segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Tolstoi





Publico a comunicação de José Milhazes na sessão realizada no Centro Cultural de Belém a propósito do centenário da morte de Lev (Leão) Tolstoi.

"Excelentíssimos senhores e amigos, começo por agradecer-vos pelo facto de terem vindo a esta reunião organizada pelo Centro Cultural de Belém.

Fui convidado a apresentar a esta reunião uma comunicação sobre um olhar de Leão Tolstoi sobre a Rússia, tarefa que rapidamente compreendi ser muito difícil, se não impossível, visto que o grande escritor e pensador russo não se preocupou apenas e não tanto dos problemas da sua pátria, mas de toda a Humanidade. As suas ideias filosóficas e morais visam melhorar a Humanidade em geral, e não apenas a Rússia em particular. O aperfeiçoamento moral e espiritual dos russos era, para Leão Tolstoi, parte integrante do aperfeiçoamento moral universal. É a ele que pertence a frase: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

Tão paradoxais são as ideias do pensador, como iremos ver mais abaixo, como paradoxais são as atitudes das autoridades russas face a ele em diversas épocas.

Pode parecer inacreditável, mas é verdade: em 2008, na Rússia não foram praticamente celebrados os 180 anos do seu nascimento. Mais, nesse ano, por incrível que pareça, três tribunais russos consideraram algumas das suas ideias “extremistas”.

Tolstoi foi acusado de “atiçar a inimizade e ódio contra a religião”, o que fez ressuscitar a luta entre o escritor/pensador e a Igreja Ortodoxa da Rússia que terminou com a sua excomunhão.

Mas é preciso reconhecer que o centenário da sua morte não está a passar despercebido, bem pelo contrário. E simbólico é o facto de, ontem, ter reaberto ao público, depois de obras de restauro, a casa-museu de Tolstoi em Iassnaia Polan, ninho da nobreza onde o conde nasceu.



Na reviravolta moral e ética que irá ocorrer na vida de Tolstoi, sobre a qual nos debruçaremos mais abaixo, o pensador russo dedicou particular atenção ao Cristianismo como uma doutrina moral e as ideias éticas dessa religião são interpretadas por ele de um ponto de vista humanista, como a base da irmandade universal dos homens.

Isto levou-o a analisar o Evangelho e obras teológicas de um ponto de vista crítico, dando essa análise origem a obras como “Estudo da Teologia Dogmática”, “Em que consiste a minha fé” e “O Reino de Deus está dentro de nós”.

Essas e outras obras foram mal recebidas pela Igreja Ortodoxa Russa, pois ele questionava a dogmática cristã, negava a necessidade da existência do corpo clerical e criticava fortemente a aproximação da Igreja em relação ao Estado.

Aqui convém recordar que, desde a época de Pedro o Grande, no início do séc. XVIII e a revolução comunista de 1917, a Igreja Ortodoxa Russa, a mais numerosa no Império, dependia directamente do Governo russo através do Procurador do Santo Sínodo, ou seja, era dirigida por um funcionário leigo. Na era comunista, o Santo Sínodo foi substituído por um Comité Estatal para Assuntos Religiosos. Ou seja, a Igreja estava acorrentada e dominada pelo poder civil, o que era fortemente contestado não só por Tolstoi.

Essas críticas foram bem recebidas por uma parte significativa da intelectualidade russa, mas receberam fortes críticas da Igreja Ortodoxa e levaram a que o Santo Sínodo excomungasse Tolstoi em 1901.

Em 2006, Kirill I, actual Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia da Igreja Ortodoxa Russa, justificou da seguinte forma a excomunhão do escritor:

"Alguns consideram que a Igreja amaldiçoou o grande escritor, como se o tivesse injustamente ofendido. Não é nada disso. A Igreja apenas constatou o que realmente existia" - declarou o clérigo ortodoxo no programa televisivo "A Palavra do Pastor". Segundo ele, "a excomunhão é apenas a constatação do facto de que uma dada pessoa não pertence à Igreja, e isto é particularmente importante compreender no caso da história de Leão Tolstoi".

"O próprio escritor afastou-se da Igreja. E o que ele disse de Cristo, da Igreja, dos sacramentos mostra a sua rotura total com a Igreja" - sublinhou o futuro patriarca, acrescentando: "e visto que muitas pessoas estavam convencidas de que Leão Tolstoi, falando assim e continuando a ser um cristão ortodoxo, lançava grande confusão no seio da Igreja e na vida social".

Deve-se constatar também que tanto o regime czarista que governou a Rússia até 1917, como o regime comunista que ruiu em 1991, nunca ousaram pôr em causa a importância de Tolstoi enquanto escritor, mas levantavam sérias reservas face a Tolstoi enquanto pensador.

O dirigente comunista Vladimir Lénine, no artigo “Lev Tolstoi como espelho da revolução russa”, escrito a propósito da primeira revolução russa de 1905, sublinha, por um lado, o papel do escritor como um denunciador dos maiores males e chagas da sociedade capitalista, mas, por outro lado, considera-o a expressão do pensamento retrógrado dos camponeses russos.

Como é sabido, o pensamento de Leão Tolstoi mudou radicalmente durante a sua longa vida. Enquanto jovem, o seu comportamento pouco se distinguia do comportamento dos nobres russos da sua idade. Rafael Lowenfeld, escritor alemão, tradutor das obras de Tolstoi para a língua alemã e um dos seus primeiros biógrafos, escreveu: “Depois das privações de Sevastopol, onde Tolstoi combateu durante a Guerra da Crimeia, a vida da capital era duplamente encantadora para um jovem rico, alegre, impressionável e aberto. Tolstoi gastava dias inteiros e até noites em borracheiras, cartas e festas com ciganos”.

Segundo alguns estudiosos, o processo de revisão radical dos princípios étnicos e morais iniciou-se precisamente depois da sua participação na Guerra da Crimeia, em 1854, onde combateu heroicamente em Sevastopol. É esse o cenário das suas obras reunidas na colectânea “Contos de Sevastopol”.

Regressado a São Petersburgo, em Novembro de 1855, Tolstoi adere ao círculo literário Sovremennik, que reunia famosos homens das letras como Nekrassov, Turgueniev, Ostroksvi e Gontcharov. Ele é recebido como “a grande esperança da literatura russa”, participa em jantares e conferências, vê-se envolvido nas discussões e conflitos entre escritores, mas rapidamente se sente um estranho naquele meio. “Essas pessoas faziam-me enjoar, eu próprio estava enjoado comigo mesmo”, escreveu ele em “Confissões”.

A morte do irmão mais velho Nicolau, em 1860, é outro dos marcos importantes da transfiguração moral e ética do escritor, transfiguração essa que demorou cerca de 30 anos, durante os quais escreveu as mais conhecidas das suas obras “Guerra e Paz”, “Ana Karenina” e “Ressurreição”.

Este último romance é de extrema importância nessa transfiguração moral de Tolstoi, pois é uma espécie de confissão de um dos graves pecados da sua juventude. Dmitri Nekhliudov e Ekaterina Maslova têm protótipos na vida real. O escritor contou ao seu biógrafo Pavel Biriukov sobre os “crimes” que cometeu durante a juventude ao seduzir Gacha, criada de uma das suas irmãs: “ela era pura, eu seduzia-a, ela foi expulsa e perdeu-se”.

Durante essa travessia, Lev Tolstoi começa a preocupar-se cada vez mais com os problemas da Humanidade em geral, considerando que os problemas do seu país só poderiam ser resolvidos nesse contexto.

Não será exagero afirmar que o pensador Tolstoi apresentou soluções para os problemas da Rússia e do mundo nos finais do séc. XIX e início do séc. XX que continuam a ser radicais ainda hoje.

Tomemos, por exemplo, a ideia de Estado do pensador, expressa numa das suas últimas obras: “O caminho da vida”.

Não conhecendo pessoalmente, nem mantendo correspondência com Piotr Kropotkin, Lev Tolstoi tem do Estado uma opinião muito idêntica à de um dos pais do anarquismo. É próxima também a posição face à cidadania: “Não pode um homem que vive no Canadá ou no Kanzas, na Boémia, na Ucrânia, Normandia, ser livre enquanto se considerar, e frequentemente, ter orgulho em ser cidadão britânico, norte-americano, austríaco, russo. Não pode também o Governo, cuja vocação consiste em conservar a unidade de uma união tão impossível e sem sentido como a Rússia, Grã-Bretanha, Alemanha, França, dar aos seus cidadãos a verdadeira liberdade, nem algo semelhante a ela como é feito em todas as engenhosas constituições monárquicas, republicanas ou democráticas”.

Segundo ele, “a principal e quase única razão da ausência de liberdade é a pseudo-doutrina sobre a necessidade do Estado. As pessoas podem ser privadas da liberdade mesmo sem Estado. Mas não pode haver liberdade se as pessoas pertencerem ao Estado”.

E aqui não há excepções, nem para os estadistas mais bem intencionados. Tolstoi é peremptório: “Um estadista honesto e virtuoso é uma contradição interna tal como uma prostituta casta ou um alcoólico sóbrio”.

Quantos dos políticos actuais desmentem esta constatação do pensador russo? – pergunto eu.



Leão Tolstoi cita as palavras de Mikhail Bakunin, outro dos grandes ideólogos e teorizadores do anarquisno: “As mudanças que se colocam agora perante a Humanidade consistem na transição do estado animal para o humano. Esta transição só é possível com o desaparecimento do Estado”.

Mas, ao contrário dos teóricos do anarquismo, Tolstoi recusa liminarmente a violência como meio para acabar com o poder e até a existência do Estado.




Isto levou a que alguns dos estudiosos o coloquem entre os pais do anarquismo, mas, ao contrário dos anarquistas clássicos, Tolstoi vê o fim do Estado no estabelecimento daquilo a que chama o “verdadeiro cristianismo”. Por isso, o seu anarquismo é definido como “anarquismo cristão”.

“A doutrina cristã não prevê destruir nada, nem uma organização sua que substitua a anterior. A doutrina cristã distingue-se de todas as outras doutrinas sociais não porque ela fale de uma ou de outra organização da vida, mas em que consiste o mal e o verdadeiro bem da vida de cada pessoa e, por conseguinte, de todas as pessoas”.

No fundo, para Tolstoi, o Estado deixa de ter sentido de existência se as pessoas seguirem os princípios: “não faças ao outro o que não queres que te faça a ti”, “ama o próximo como a ti mesmo”.

No entanto, o seu “cristianismo” entrou em colisão com a igreja oficial na Rússia, pois, tal como no caso do Estado, o pensador russo não aceita uma igreja estruturada, organizada.

Esta forte contradição fez perder a paciência da Igreja oficial, no caso, a Igreja Ortodoxa Russa, que acabou por excomungar o pensador. Tolstoi não via nessa instituição religiosa a sucessora do Estado, mas o fim deste implicava também o desaparecimento da primeira, pois “a verdadeira fé não precisa de Igreja”. Como está bem explícito no título de um dos seus livros: “O Reino de Deus está em vós”.

Esta visão anti-Estado de Tolstoi prevê a negação de todas as instituições que o constituem e em que ele se baseia: a negação da propriedade privada, dos tribunais, do serviço militar e da violência em geral.

No caso da violência, tal como face ao Estado, Tolstoi recusa-a totalmente como meio de conseguir objectivos políticos, sociais e económicos. Numa das obras já citadas “O Reino de Deus está em vós”, o pensador expôs as bases da sua doutrina de não-violência e de resistência pacífica, que teve seguidores famosos como Mahatma Gandhi e Martin Luther King.

Neste sentido, as ideias do escritor russo aproximam-se também do Budismo, religião que ele conhecia muito bem e estudou profundamente.

“Uma das principais desgraças das pessoas é a concepção falsa de que umas pessoas podem, através da violência, melhorar, organizar a vida de outras pessoas”, escreveu Tolstoi no “Caminho da Vida”.

Palavras visionárias do pensador russo sobre os regimes ditatoriais: comunismo e fascismo, que marcaram o século XX.

Este poder de visão está bem patente na análise que Leão Tolstoi faz da Revolução Republicana de 1910 em Portugal.

O grande escritor e pensador russo, recebeu a notícia com alguma dose de humor.

Valentin Bulgakov, um dos secretários de Tolstoi, escreveu nas suas memórias: “Em Setembro (Outubro segundo o calendário gregoriano) rebentou a revolução em Portugal. Eu contei a Lev Nikolaevitch que, segundo as informações dos jornais, o rei português Manuel, depois de fugir do palácio, esteve duas horas escondido numa adega. Tolstoi observou a propósito: - As revoluções são inevitáveis nos Estados modernos. É como um incêndio, toda a Terra arderá... Chegará a hora e todos eles, esses reis, esconder-se-ão nas adegas!”.

Porém, ao analisar o carácter “relativamente pacífico da revolução em Portugal, Tolstoi assinalou: “No nosso país, se tal coisa acontecer, não terá lugar uma revolução portuguesa”.

Os posteriores acontecimentos na Rússia vieram dar-lhe razão. Em nome da construção de uma sociedade sem classes e de um futuro comunista sem Estado, Lénine, Trotski e Estaline transformaram o seu país num verdadeiro campo de concentração. “Tanto os estadistas como os revolucionários consideram justo e útil matar outras pessoas. Eles têm princípios segundo os quais pensam que podem saber quem é necessário precisamente matar para o bem comum”, sublinha Tolstoi.

Com ideias como estas, certamente que Tolstoi teria sido devorado pelo Moloque bolchevique ou cuspido do seu país, como foram expulsos centenas de cientistas, escritores, filósofos, etc.

Mas voltemos atrás, à medida que a idade vai avançando, o pensador vai radicalizando a sua posição de negação do mundo envolvente, não poupando nada, nem ninguém, incluindo a sua própria pessoa. É o período de obras como “A morte de Ivan Ilitch”, “A Sonata para Kreutzer”, o “Padre Sérgio”, o “Cadáver Vivo” ou o conto “Após o Baile”. Ao mesmo tempo que descreve um quadro da desigualdade social e do modo fútil como as camadas instruídas queimam a vida, Tolstoi continua a colocar perante si e perante a sociedade questões sobre o sentido da vida e da fé, intensifica as críticas a todos os institutos do Estado, nega a ciência, a arte, os tribunais, o casamento, os êxitos da civilização.

No Verão de 1909, um dos visitantes de Iassnaia Poliana, residência de Tolstoi nos arredores de Moscovo, começou a manifestar o seu entusiasmo e agradecimento pela escrita de obras como “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”. O escritor respondeu: “isso é o mesmo que ir visitar Edisson e dizer-lhe que o respeito muito porque dança bem mazurka”.

“Dou importância a outro tipo de livros”, acrescentou ele tendo em vista as suas obras de cariz filosófico e religioso.

Em obras suas de crítica cultural e estética: “Sobre a Arte”, “O que é a arte?”, “A escravidão do nosso tempo”, “De Sheakspeare e do drama”, Tolstoi faz uma crítica demolidora de génios como Dante, Rafael, Sheakspeare, Bethoven, etc., chegando à conclusão. “quanto mais nos entregamos à beleza, mais no afastamos do bem”.

Assim Tolstoi chega à renúncia total do que é material: “Tenho nojo da minha vida; sinto-me mergulhado nos pecados, logo que saio de um, entro noutro. Como emendar pelo menos um pouco a minha vida? Há um meio de todo eficaz: reconhecer a minha vida no espírito, e não no corpo, não participar em actos sujos da vida corporal. Se desejares isso de todo o coração, verás como a tua vida começará a emendar-se. A vida era má apenas porque a tua vida espiritual servia a vida corporal.

A sua filosofia e princípios morais, à medida que se iam radicalizando, acabavam por entrar em contradição com a própria vida real de Tolstoi e provocavam conflitos no seio da numerosa família. A sua negação da propriedade privada, por exemplo, foi uma das razões que o leva a romper com a família no fim da vida. Isso provocou forte descontentamento de vários membros da família, incluindo a esposa.

Recusando-se a seguir o princípio do “olha para o que digno, mas não para o que eu faço”, Tolstoi dá o último passo na ruptura com o mundo que o rodeia e abandona o lar e a família.

A sua fuga do lar no fim da vida parece ser a sua última tentativa de materializar as suas ideias, mas faltou tempo. Passou por alguns dos lugares mais sagrados da Ortodoxia russa, mas acabou por não se reconciliar com a igreja, como lhe pediam numerosos amigos.

A 20 de Novembro de 1910, Tolstoi falecia na pequena estação ferroviária de Astapov.

Não obstante as autoridades czaristas terem feito tudo para que o funeral de Tolstoi não se transformasse num acontecimento nacional, vários milhares de pessoas conseguiram chegar a Iassnaia Poliana, para participarem no seu funeral.

Talvez outro paradoxo. A julgar por alguns números, o seu legado intelectual é muito mais procurado fora do que dentro da Rússia. Por exemplo, se a livraria electrónica russa ozon – a maior do país - tem à venda menos de cem títulos de Tolstoi, sendo a maioria livros usados, na amazona.com, em inglês, poderemos encontrar mais de cinco mil títulos.

O sacerdote, filósofo e teólogo ortodoxo Alexandre Men, barbaramente assassinado nos anos 90 do séc. XX, escreveu: “Tolstoi continua a ser a voz da consciência. É a censura viva para aqueles que estão convencidos de que vivem em conformidade com os princípios morais”.

O ditado bem diz que “ninguém é profeta na sua própria terra”. No caso de Tolstoi, a palavra terra deve ser escrita com letra maiúscula, ser sinónimo de planeta.

Não poderia deixar de abordar, antes de terminar a minha comunicação, a Cimeira Rússia-NATO que se realizou ontem em Lisboa. Acho que a data não foi escolhida para que esse evento coincidisse com o dia do centenário da morte do grande pensador russo, mas o facto é que coincidiu.

Falou-se muito de guerra e de paz, talvez mais da primeira do que na segunda, mas o certo é que ouvi numerosas vezes os dirigentes de numerosos países a declarem até à exaustão que “a guerra fria terminou”. Ao conversar com um alto representante de um dos países membros da NATO, perguntei: “Terminou a guerra fria? Outra vez?”.

Ele olhou para mim e acrescentou: desta vez, parece mesmo que sim. Se assim for, e se as relações entre a Rússia e a NATO continuarem a evoluir no sentido da aproximação, da redução do vector militar e do aumento da vertente civil e humanitária na cooperação bilateral, então poderemos alimentar uma esperança muito ténue de que, pelo menos no Velho Continente, algum dos ideais de Tolstoi se concretize.

Obrigado pela atenção.



terça-feira, 30 de novembro de 2010

As influências gnósticas de Peter Sloterdijk






As influências gnósticas de Peter Sloterdijk

Por: José Luiz Bueno - Universidade de São Paulo, Brasil


Resumem


O filósofo alemão Peter Sloterdijk, em uma de suas mais conhecidas obras, “Extrañamiento del Mundo” se propõe, em seu esforço de construir uma moderna teoria do homem, a retomar e fazer fecundo o que ele chama “um velho tema gnóstico”. Com os elementos adquiridos nesta retomada, também prentende atualizar a presente linguagem não-metafisica para que esta possa dar conta de aspectos da experiência humana de negação do mundo, tema em que somente nas línguas metafísicas se encontram recursos para a sua expressão. Assim, nos propomos a fazer um percurso por textos do filósofo alemão para avaliar se, e em que medida, os conceitos gnósticos estão presentes em seu pensamento.


Las influencias gnósticas en Peter Sloterdijk (1)


No prefácio de seu livro Extrañamiento del Mundo (2), Peter Sloterdijk diz que “encabeza una serie de tentativas de hacer fecundo um viejo tema gnostico para uma teoria moderna del hombre”. Nossa proposta é rastrear a presença destes conceitos gnósticos em alguns textos de nosso autor. Para tanto, analisaremos não somente o livro acima citado, mas também textos de seu livro Esferas II (3), procurando, assim, reconhecer se, e em que grau, a presença de tais conceitos em suas argumentações conformam de alguma maneira a estrutura de seu pensamento.

Peter Sloterdijk se pergunta no título de um capítulo de “Extrañamiento del Mundo” se o mundo é negável. Partindo desta questão, Sloterdijk se propõe a atualizar algumas idéias antigas, muito estruturais na consciência ocidental, e que se fazem presentes de maneiras empiricamente observáveis, como é o caso da prática das pessoas de estar e não estar no mundo. A música, a meditação não objetiva, o entretenimento, o sonho noturno e diurno, a religião, são, entre tantos outros, alguns caminhos do sujeito contemporâneo através dos quais este faz desaparecer o mundo externo para, talvez assim, aliviar o peso deste sobre si mesmo.

Entretanto, encarar esta questão não se esgota em somente fazer um simples discurso psicológico mecanicista de uma tendência biopsíquica do indivíduo humano. Ao menos é assim que vemos o esforço de Sloterdijk, que propõe que a antropologia e a psicanálise devem ser os sucedâneos da metafísica em tempos de pensamento não metafísico.

Para isso, deve-se ter novas formas de contar a história do homem, e discorrer sobre a metafisica de uma maneira melhor do que ela faria sobre si mesma. É assim que a linguagem poderosamente metafórica de Sloterdijk adquire seu sentido e sua aplicação. E este é o caso da grande linguagem metafórica das esferas. Esta imagem, que é assumida como sua principal maneira de expressão, não é apresentada como sua criação senão como uma morfologia universal identificável antropológica e historicamente.

Se as idéias e conceitos gnósticos se harmonizam com a metafórica das esferas é algo que vamos investigar neste ensaio.

Teoforia e serviço ao centro

Nos diz Sloterdijk que o caminho antropológico e histórico do homem começa em microsferas íntimas, do tipo útero-placenta, que estabelecem um modelo que se repete em planos macroesféricos. A saída ao mundo é a primeira experiência de uma esfera que explode e lança o homem ao desabrigo de um mundo sem teto.





Assim, a questão inicial se enfrenta localizando o homem no histórico espaço esférico que o constitui. A metafísica clássica empreendeu o esforço de compreender o homem como um ser epicêntrico (4) num todo macrosférico de centro absoluto. Meditando sobre a imagem mítica do gigante Atlas (5) que sustenta o mundo, nosso autor põe a questão da impossibilidade de uma visão excêntrica do mundo desde fora e, ao mesmo tempo, a mesma impossibilidade de uma visão absolutamente centrada da esfera ontológica. Com isso, o homem vê o mundo sensivelmente, o que significa não contemplá-lo em seu interior desde um ponto médio real, e também, ver a si mesmo como um ser ao mesmo tempo deslocado e excêntrico. Em termos gregos, os humanos não são apenas os mortais, mas também os removidos do centro, os marginais de Deus, semicegos, semiclarividentes. Entretanto, pensar metafisicamente ainda é pensar o homem como um ser epicêntrico atraído por este centro; então, sua existência epicêntrica significa saber-se exalado de um centro supremo sem poder se confundir com o mesmo.

Diferentemente da situação do Atlas, o que se sucede com os papéis sustentadores do ser humano é que, como epicentro, um centro deslocado do ponto central, está subordinado a um centro e é atraído e utilizado por este. E isto se pode encontrar na história cristã da salvação, na qual os seres humanos têm uma relação forte com o centro e são utilizados (6) por ele no autocumprimento da salvação.

Sloterdijk considera o caso da Virgem Maria como especialmente eloqüente (7). Em uma descrição naturalista, a relação mãe-filho, que é a situação fundamental da criação microesférica de intimidade, põe o peso anímico na mãe. Mas, esta ordem metafísica muda no caso de Maria pois a mãe não é a que produz a criança, senão que é apenas uma portadora, teófora, do homem-Deus, uma atlante íntima, pois se não leva o mundo sobre os ombros, carrega-o em seu interior, em seu ventre, na figura do homem-Deus. A ordem muda a ponto de não ser a mãe quem produz o filho, senão o contrário, o que porta (a mãe, criatura) é produzido e o que é portado (o filho, homem-Deus criador) é quem produz. A macroesfera utiliza completamente para si a microesfera. Assim, dever-se-ia dizer, em linguagem esferológica, que o epicentro deve dar o melhor de si mediante sua autodisposição nas ações do centro. E assim se alcança a utopia da relação forte entre epicentro e centro, na qual o epicentro se torna digno por delegação do centro.

Diz Sloterdijk:

“Así surge el modelo normativo de los grandes mundos: la metafísica de la cooperación y servicio al centro” (8).

Neste modelo, distinto da escravidão do gigante Atlas, o serviço ao centro deve se dar de maneira consciente, nunca como uma recepção passiva de estímulos provenientes do centro, mas em vez disso, como uma espécie de co-espontaneidade inteligente (9). A metafísica cristã não é de sumissão passiva ao centro, mas de que “el centro adyaciente tiende hacia al centro mediante sumisión activa” (10).

Sloterdijk, de passagem, faz notar que “el caminho de la subjetividad moderna conduce, a través de la cooperación con Dios, a uma igualdad mística de condición con él y, desde esta – después de la muerte de Dios – a la situação comprometida, aunque triunfal, de quedar sola como trabajadora para todo” (11).

Sloterdijk, em uma análise do mito de São Cristóvão (12) (Cristo-foros, o transportador do Cristo), o faz figurar como um substituto do Atlas, o que converte o mito do escravo que suporta um peso morto em um ato de solidariedade entre o epicentro e o centro, um ato metafísico de serviço.

O exemplo de São Cristóvão mostra uma solução para o problema do Atlante pois agora a esfera se converte em um todo no qual o centro está intimamente relacionado ao epicentro. O serviço cristofórico é um serviço dentro de uma relação de amor do centro ao epicentro. Assim, o modelo de serviço amoroso ao centro pode ser utilizado para a monarquia do centro, pois o que antes era esforço recalcitrante se converte agora em impulso servil.

O cristianismo estabelece um “principio de solidaridad anclado em espacio dual, puesto que concibe, ingenua y reflexivamente a la vez, la acción solidaria como cooperación del epicentro en el proyecto del centro”. (13)

Embora para os modernos, cujo pensamento se caracteriza por descentralizações de tipos vários, a metafísica esférica esteja esquecida, e embora os manuais de filosofia façam apenas alusões a uma velha ontologia das esferas, a história da velha metafísica européia, segundo Sloterdijk, “fue toda ella uma única meditación entusiástica de la esfera animada y de la existência cómplice” (14). Ou também que “entendida como ontoteología y cosmología filosófica, la metafísica clásica no fue otra cosa que un ritual-teoría inmensamente circunstanciado y complejo en honor de Su Majestad la Forma Redonda” (15).

O culto à monoesfera consistia de um esforço de apaziguar a inquietude humana diante de um mundo ampliado e assustadoramente aberto através de uma morfo-teología que aportava mais segurança e sentido de proteção, pois, com a esfera, se poderia abarcar o todo em um único giro.

Desta maneira, o evangelho da boa nova redonda fazia com que qualquer indivíduo, inclusive o mais distanciado do centro, pudesse ser alcançado por ele como que por um raio de bondade emanado do centro absoluto. Claramente se vê a presença do conceito de um centro bom que faz todo o entorno tornar-se abrigo para o ser humano desgarrado. Diz o nosso autor: “con la imagem de la esfera se extiende el evangelio de la inclusión total: nada real puede estar realmente fuera” (16).

Quando o poder procede do centro, nada fica absolutamente fora, nada fica separado, a não ser por um ato de rebeldia. A ontologia da esfera é uma meditação sobre a possibilidade de que tudo tenha sentido e de se estabelecer uma espécie de terapêutica da participação no todo.

A história do início do cristianismo mostra seus teólogos acomodando o conceito de Deus à metafísica das esferas. A relação da alma com Deus somente ocorre em uma relação forte e se ambos pertencem a um mesmo espaço interior comum, no qual Deus é o centro e as almas são pontos fora do centro, mas conectados a ele a partir da irradiação do centro.

Ficar fora do espaço interior, ou estar na excentricidade, foi um ato somente da figura que representa a exterioridade e a autorreferência, que, na teologia cristã, é o Satã e seu séquito de pecadores. Satã seria o símbolo de uma tese atéia de exterioridade, de uma liberdade religiosa relativa à teologia esférica e ao poder do centro e, além disso, a uma indiferença morfológica. De tal maneira que a imagem do inferno corresponderia muito bem à experiência moderna de múltiplas excentricidades autorreferentes.

Com esta idéia de um centro forte que atrai tudo a si, insere-se a idéia de altruísmo, pois a atração do centro é uma força dirigida ao outro. De forma que o centro esférico faz iguais o teocentrismo e o altruísmo, e além disso, os pontos excêntricos estão conectados não somente ao centro mas a todos os pontos adjacentes, estabelecendo a consciência de coexistência na esfera e a ética e a solidariedade como forças de coesão.

Nosso autor põe agora em destaque o mais potente contraste à metafísica ou teologia esferológica. O conceito de Deus se harmoniza com a esfera pois protege as fronteiras do ser frente ao nada, tendo isto garantido que o Deus esferocêntrico tenha permanecido em vigor enquanto seus teólogos sustentaram sua virtude de ser uma esfera. Entretanto, quando os filósofos e teólogos começaram a tomar a sério o atributo da infinitude de Deus, que Sloterdijk considera como o movimemto endógeno que deu lugar à modernidade (17) – pois em uma esfera infinita se perde a diferença ontológica entre dentro e fora e assim o centro está em toda parte e, portanto, em nenhuma. Este é o resultado da infinitização de Deus e do universo e que prepara a morte de Deus. Sloterdijk diz que a morte de Deus é uma “tragédia morfológica” (18). O Deus infinito é um Deus invisível, amorfo, o qual, por não fazer diferença entre dentro e fora, não pode oferecer nenhuma vantagem em se estar dentro dele.

A morte de Deus é a morte da esfera. O nascimento da modernidade põe em relevo a necessidade de cada ponto ser autorrefente, de sua posibilidade de ser um lugar em si mesmo, de que o egoísmo seja a única e última possibilidade de centralização. Todo aquele que é um “si mesmo” deve ocupar-se de si mesmo, seja este um indivíduo, um Estado, uma família ou uma empresa.

Sloterdijk propõe uma definição morfológica de modernidade como sendo um “excentrismo não-satânico” e denominará “espumas” as “aglomerações de pontos excêntricos autorreferentes” (19).

As imagens combinadas do “transporte” de Deus, o qual confere intimidade e proximidade interna com o Deus central, e a imagem da esfera todo-abarcante que protege as fronteiras contra o nada, são uma poderosa combinação da idéia de uma centelha divina produzida no centro e transportada pelo homem com a idéia de sua tendência a uma tentativa de aproximação, de estar conectado e de voltar ao centro divino para não ser arremessado fora do campo do ser no nada da não-existência. O que coincide com uma idéia gnóstica fundamental, que é a de que todas as centelhas divinas, constituintes do homem desejam voltar ao centro luminoso que as produziu.


Peter Sloterdijk




Meios puros, telecracias e a metafísica das telecomunicações

Um outro ponto de vista de importância na discussão da esferologia sloterdijkiana é a sua capacidade de demonstrar como se produz a coesão de um grande império através do conceito de poder central emanado e presente em todas as partes do império por meio da telecomunicação. Neste tema, a idéia de emanação, tão cara ao neoplatonismo e ao gnosticismo, será a mais fundamental.

Como avalia Sloterdijk, a antigüidade testemunhou o desenvolvimento da tecnologia de presença do poder à distância do centro. Os grandes impérios da antigüidade só podem ser compreendidos em seu sucesso mediante a presença de um uso consciente de uma telecracia em molde esferológico.

A essência mesma de um poder centralizado é a sua capacidade de atuar à distância como se estivesse alí e isto se dá com a criação de signos majestáticos que podem ser emitidos a qualquer parte do império representando o poder e fazendo-o presente in absentia. Na cultura cristã, o exemplo de encontro de ser e signo é o ritual da eucaristia.

O poder central se revela com capacidade de expansão e transportabilidade quando consegue estabelecer signos plenos nos quais participe seu poder e seus mensageiros plenipotenciários. Estabelecer signos do ser é criar a capacidade de emitir signos de poder a qualquer lugar onde não possa estar e onde, precisamente, deve estar.

O grande exemplo do apóstolo Paulo demonstra como é possível que um signo seja o mesmo que o remetente do signo, não somente uma lembraça deste mas o remetente mesmo. O verdadeiro emissário deve participar da substância do ser do remetente e deve manifestá-la em presença real (20). O mensageiro que ouviu diretamente a mensagem e a transporta faz com que os destinatários sejam responsáveis por suas reações diante da mensagem como se a houvessem ouvido diretamente do remetente (21). Este é o poder conferido ao mensageiro.

A característica que se exige do mensageiro é de que seja um meio puro, que não reclame co-autoria na mensagem, que não veja seu próprio interesse, que seja, portanto, diáfano, transparente, eliminando a distância entre o remetente e os destinatários, atuando, em outras palavras, como um neutrum, um mero canal. Do mensageiro também se espera um perfeito altruísmo, que se manifeste independentemente das características ou da situação atual do mensageiro. Veja-se o exemplo tanto de Moisés com sua língua pesada ou de Paulo com sua capacidade de escrever com uma prosa engenhosa: ambas as situações são indiferentes quando chega o tempo de serem usados como canais do emissor divino.

O caso do apóstolo, todavia, não se trata de um mero assunto de carteiro ou de enviado. O tipo de mensagem levado pelo apóstolo aporta um tipo de recepção da mensagem que não permite que o remetente mude o tipo de meio de envio da mensagem, por exemplo, fazendo-a escrita em vez de oral. O caso do apóstolo é paradoxal pois o remetente o faz a partir de sua transcendência e o mensageiro, por isso, torna-se insubstituível. Se o remetente perde o mensageiro, perde-se a mensagem e o Deus remetente não pode se manifestar no mundo.

Com a ascensão do Cristo, o remetente se colocou completamente nas mãos do processo evangélico. Sloterdijk cita as três instâncias em que o remetente se deixou em mãos dos mensageiros: “desde su retirada de la carne se convirtió plenamente em ser noticiable (predicación), plenamente em sociedad mediática (iglesia) y plenamente em procesamiemto informativo (teología)” (22). Estas dimensões dependem integralmente do apóstolo mensageiro plenipotenciário. Entretanto, a delegação de poderes do apóstolo não tem outra justificação a não ser ele mesmo; sua plenipotencialidade é autofundada. Somente se sabe que o apóstolo foi enviado com uma mensagem por que ele mesmo o disse. Mas a situação não é tão simples pois o apóstolo não fala em seu próprio nome e, além disso, diz que quem o enviou é que lhe deu tais poderes.

Desta maneira, o discurso apostólico somente se pode fundar e se fazer valer através de uma forma nova de transmissão da mensagem, especificamente cristã, que é a do “medium-ismo” (23). O apóstolo opera uma mudança ontológica de sujeito, trocando sua voz pela do remetente, de tal sorte que “Dios mismo es el hablante” (24).

O maior êxito do apóstolo como mensageiro possuído pela missiva é o de convencer os receptores da mensagem a também se converterem em mensageiros. Assim se pode compreender como foi possivel surgir um mundo em um mundo, um império em um império, a igreja operante no âmbito imperial.

A crença na universalidade da mensagem de Jesus a faz alcançar amplitude imperial, por isso deve ser levada e tornada presente em todo o império. Precisamente esta necessidade, fundada em uma visão macroesférica de uma notícia a ser levada a todo orbis terrarum, exigirá do cristianismo uma solução para o problema de um sistema universal eficiente de propaganda.

O neoplatonismo formulou o modelo que permite entender a energética do domínio à distância através de um processo radiocrático. Seu conceito básico é o de emanação, que tem no modelo solar um de seus exemplos, utilizado por Plotino para explicar como se emana um raio de luz ou calor que, por emanação, alcança as periferias do mundo manifesto.

O modelo platônico exige que se entenda que o sol central não apenas emite calor mas que suas emissões de luz levam consigo as formas ideais que se manifestam em objetos sensíveis e que os fazem reconhecíveis pelo intelecto (25).

Além do exemplo do sol, Sloterdijk cita o exemplo plotiniano do desfile real que mostra que mesmo as fileiras mais externas em desfile já representam a dignidade real, com o mesmo ocorrendo em todas as outras circunferências de poder em torno do rei (26). O processo de emanação é assim resumido por nosso autor: “una unica conmoción en el centro, por decirlo así, solar, que comienza como rayo, atraviesa el espacio como proceso de signos y acaba en un movimiento de mano” (27).

O imperador Constantino fez o grande amálgama entre os símbolos telecráticos imperiais solares e os signos bíblicos. Segundo Sloterdijk, através deste imperador solar, o cristianismo levou o platonismo ao poder fazendo do império cristianizado um neoplatonismo para o povo, com um rei filósofo batizado e com a emanação do poder a partir do centro (28).

O neoplatonismo, enquanto emanacionismo, permitiu conceber com suficiente clareza o modelo de emissão de poder, de delegação imperial e transmissão ontológica do poder. Com isto, o neoplatonismo se torna a ontologia política velada da cultura imperial (29).

Neste mesmo sentido, a filósofa brasileira Marilena Chauí, especialista em filosofia política e no filósofo Baruch de Spinoza, em seu livro “Política em Espinosa” faz a avaliação da importância fundamental da metafísica neoplatonista, incluindo-se os conceitos emanatistas hierárquicos do Pseudo-Dionísio Areopagita, como sendo a ontologia política da cultura da antigüidade e descreve como esta ontologia foi incorporada aos princípios da teologia política da Igreja em seu esforço de justificação do modelo de poder centralizado e emanado do trono do Pontífice (30).

As antigas técnicas de emissão emanacionistas dependem de que o “médium” seja perfeitamente desinteressado e que possa deslocar-se por todo o império, de forma que no nível divino isto se resolva com a figura desinteressada e pura, o mensageiro que, de tão desinteressado, não possui nem a si mesmo. Assim são as figuras dos anjos e arcanjos.

O imperador, entretanto, depende de ministros e funcionários quase-desinteressados, o que expõe a comunicação ao risco iminente da corrupção. O mal aparece quando o mensageiro abusa do poder de porta-mensagem ao introduzir seus interesses no processo de levar a mensagem. Isto representa o protótipo do mal e do malvado introduzindo-se no mundo.

As antigas culturas de domínio dependem da ascese (pureza) e fidelidade de servidores e funcionários, que são as virtudes do desinteresse nos mediadores do poder central . Um mensageiro que pense em si mesmo não executa sua missão com sentido, ele deve substituir seu ego pela subjetividade do senhor. O conceito de “diáfano” é o poderoso conceito de um mediador permeável.

O mensageiro deve renunciar ao seu si-mesmo antes de sair em missão. E isto, assim como a investidura no cargo de mensageiro, não se faz sem formalidade. O ser-para-o-serviço é o conceito que fundamenta o tabú do egoísmo e a proibição do narcisismo. A possibilidade de um ser humano esquecer-se de si mesmo para melhor servir a seu senhor é o que tornou possível esta ética de ser-para-servir, imprescindivel para a arquitetura do poder.

A idéia do olvido de si, a proibição do narcisismo e o tabú do egoísmo são frontalmente opostos à idéia tipicamente liberal dos egoísmos como forma socialmente organizada inclusive de distribuição do trabalho; além disso, a era moderna neutralizou e naturalizou o chamado “mal”.

Se Satã representa o mensageiro infiel, e sua falha – a traição - é considerada o pior dos pecados, o Cristo e a igreja representam o bom e fiel mensageiro e inauguram a nova era salvífica, e a estrutura eclesiástica garante a pureza da mensagem através da ação de uma oficina central, a Igreja do bispo e seus funcionários-sacerdotes, que censura as missivas para garantir as representações puras entregadas por funcionários desinteressados.

Põe-se, então, a questão de como grandes corpos políticos e eclesiásticos, desde o final da Antigüidade até os umbrais da Idade Moderna hajam organizado e fundamentado sua coerência “semiosférica”. Esta questão é melhor enfrentada se lhe pomos a questão diretamente: “Como es posible la síntesis de emanacionismo y apostolado?” (31)

Ou, em outras palabras, como é possível que o apóstolo, um mensageiro, ocupe o lugar de poder do imperador, cuja fundamentação de sua posição é emanacionista? Como o mensageiro se converte em imperador?

“En Esta Vida – Teorias Críticas del Nacimiento” (32)

Na parte 2 do capítulo em epígrafe de “Extrañamiento del Mundo”, Sloterdijk lembra que, segundo Spinoza, “determinatio est negatio”, e raciocina que, se isto vigir na grande escala, determinar o mundo quer dizer, ao mesmo tempo, dizer o que ele não é. Não há como determinar o mundo sem negá-lo. Todavia, para Sloterdijk, determinar o mundo ao mesmo tempo significa aglomerar tudo o que pode cair no espaço representativo, imaginativo, do existente, e pô-lo diante ou em destaque contra um fundo que se pode saber como um nada, ou ao menos como tudo aquilo que não é o todo e que o faz determinável. É a dualidade insuprimível do fundo-todo na esfera da representação. A metafísica, em seu campo discursivo, poderia, assim, ser definida como um “juego de pensamiento con la totalidad como figura” (33).

Deste ponto se pode voltar à questão inicial proposta sobre um pensamento pelo qual metafísica e psicanálise se encontrem e possam falar sobre “o mesmo”, o que se mostra claramente com a questão multicultural do nascimento. Sloterdijk avalia que ambas as disciplinas funcionam como escolas da recordação. A psicanálise tenta ouvir o que se diz “em mim” como vestígio do esforço de vir ao mundo enquanto a metafísica sinaliza “todo o aí” onde o existente está submergido.

Neste exato ponto, Sloterdijk faz um giro muito interessante ao afirmar que a tradição metafísica postula que “a morte faz pensar”, entretanto, ele diz que “retrocedendo ante la metafisica del reino de los muertos, se muestra que, en verdad, es el nacimiemto el que ‘hace’ pensar” (34) (falta a citação). Neste giro, o autor propõe que os discursos metafísicos anteriores tentaram mostrar que o nascimento é parte de um movimento do absoluto, além de pretender mascarar as implicações mortais do próprio fato de se haver nascido.

Mas a individuação é o processo que realmente importa, pois permite ao indivíduo saber que está aí embora não possua a lembrança de seu nascimento, e tenha como sua auto-definição um “rotundo yo-no-sé” (35) a respeito de sua natureza íntima. É a obscuridade relativa ao seu próprio nascimento que o possibilita como indivíduo. Diz o autor: “sé que eso que lleva a mi no lo sé como uno que estuvo presente” (36).

Mas este absoluto olvido do passo pelo desfiladeiro do nascimento é o próprio princípio da relativa felicidade inicial, pois se não há recordação, isso simplesmente pode querer dizer que não se passou nada que represente um motivo para que seja lembrado, e por conseqüência, não haver nada que recordar-se pode ser o mesmo que dizer que não deve ter havido um caráter absolutamente mau nesta experiência inicial.

Desta forma, não se ter a memória do fato do nascimento, não se ser testemunha de seu próprio vir ao tempo e ao mundo, ou seja, não ter que ver a si mesmo do exterior, de fora, nos protege contra o perigo de vermos a nós mesmos como seres que atravessam um certo intervalo de tempo relativamente definido e que caminhamos para o desaparecimento, que sejamos como alguém que está no mundo como um prisioneiro condenado à execução em sua própria cela. Sem o olvido da cisão inicial, e sem a conservação da irreflexão original, a vida se converte “nesta vida” e tudo se passa como uma liquidação penosa de conteúdos vitais ávidos de ser no tempo, a vida se passa como um “fragmento de finitude pánica” (37).

A metafísica faz o esforço de objetivar o indivíduo mediante o apontar para “esta vida” e aí fazer-se uma casuística metafísica do microcosmo individual. E isto é o intento metafisico de conquista de uma ausência de morte. Esta passagem “inaugura la aventura del radical ascenso de la negatividad” (38).

A metafísica de ambos os mundos, hindú e gnóstico, é casuísta e mostra o existir “nesta vida” como o marco de uma história casuísta absoluta. Mas, em ambos, também para a iluminação permanece obscura a razão última para a caída “neste mundo” e “nesta vida”. O que se consegue encontrar são explicações do “para” e do “como” na individualidade.

Mas a perplexidade do ser-no-mundo não encontra uma língua autêntica para sua expressão; não o encontra nos idiomas metafísicos antigos nem na língua da psicologia profunda, pois estas oferecem diferentes hermenêuticas do ir parar no mundo. Todas as metafísicas casuístas, todas as religiões de liberação e todas as psicoterapias não mecanicistas não são mais que respostas ao mesmo mal-estar pós-natal.

Analisando a descrição gnóstica do processo de descenso, de caída, neste mundo e a aquisição das qualidades negativas dos planos por onde a alma passa em seu descenso, assim também a da ascensão como processo de regresso, de subida, de expropriação do mundo e reintegração ao pleroma, notamos que se fecha o círculo hermenêutico que foi posto em marcha quando ocorreu a pergunta pelas condições do próprio nascimento-caída. Mas a terapia gnóstica de iluminação somente pode dizer-se exitosa quando faz o paciente tão feliz em sua iluminada consciência em Deus que não pergunta mais pelas razões de ter entrado no circuito de descenso-ascenso da alma.

Segundo a descrição de Sloterdijk, também na literatura antiga do hinduísmo o casuísmo do processo de vinda ao mundo parece ignorar as perguntas pelo sentido do haverem as almas ido parar no mundo. A escolha de um ventre na roda das reencarnações é um tema da alma consigo mesma, dependendo de sua história pré-nascimento e de seus méritos ou culpas. A negação do mundo pela liberação se torna um tema universal do mundo especialmente con o advento do budismo, que chega ao ponto máximo de que a saída radical da roda de reencarnações exige a negação radical dos ventres. Se há alguma alegria do absoluto pelo nascimento no brahmanismo, isto encontra na radical negação budista seu mais extremo oposto. O budismo considera que o brahmanismo ainda é um mascaramento de formas de manutenção do processo de reencarnação, ou seja, de afirmação dos ventres. Para o budismo, não há nenhum motivo que faça com que “esta vida” não seja a última.

Assim como no gnosticismo o ato de entendimento do vir a parar no mundo é a cura para a liberação, também a doutrina budista tem traços terapêuticos gnosiológicos, pois o saber ou conhecer o princípio do processo pode redimir as paixões impostas pelo não-saber que lançam a alma em um ventre. Neste ponto, pode-se considerar o papel da meditação não objetiva para o budismo como processo de regresso a antes da origem do processo de vir a esta vida, a este Eu, e submergir antes da origem, dissolvendo os primeiros vestígios de personalidade, e com sua atenção focalizada neutraliza os mais prematuros registros da experiência formadora do Eu.

Peter Sloterdijk

O Acosmismo (39)

Ora, é interessante notar que Sloterdijk aponta que, se a psicanálise mais ampla e a antropologia histórica querem desenvolver uma línguagem não metafisica para responder a nossas questões de como nos fizemos e o que somos, elas devem, para isso, “esforzarse por una traducción de las antiguas doctrinas sapienciales en una dicción moderna” (40).

O autor põe uma línguagem (a metafísica, antiga) diante da outra (a não metafisica, atual) e as mostra em seu conflito, onde a primera diz que a nova sofre da ignorância dos processos de negação e do vir-a-parar, enquanto que a nova argumenta que substitui o exercício espiritual pela clínica e a terapêutica, e nos casos mais árduos enfrentam o risco de nada ter a oferecer além de diagnósticos rígidos.

Diz Sloterdijk que “solo em alianza con la força de la tradición metafísica puede llegar la segunda lengua a ser lo bastante rica como para convencer como lengua universal de la ecumene psicológica-antropológica” (41).

Será rica a segunda língua se, para evitar o perigo de rápido esgotamento, conseguir fazer uma tradução dos antigos termos básicos das velhas metafísicas casuistas: iluminação, salvação, liberação.

O autor propõe como possíveis traduções: para a iluminação, uma teoria da ausência de mundo; para a salvação, uma teoria do acabar; e para a liberação, uma teoria da criatividade. Em uma escala ascendente de complexidade, a ordem seria iniciada pela liberação, uma vez que a modernidade encontrou na criatividade uma nova expressão para a velha metafísica. Depois, a salvação já oferece problemas mais complexos de tradução, pois depende da fé em que o bem tende à longevidade enquanto o mal é abreviável. Com a teoria do acabar se abarcam as três campanhas contra os males, as quais são as idéias políticas de reforma, a técnica e a clínica. Assim, salvação é o alívio pelo sair de círculos viciosos.




O mais difícil, diz Sloterdijk, é traduzir a iluminação. Esta tradução ainda parece um disparate para os dois lados, para metafísidos e para não metafísicos. Para os não metafísicos, a expressão foi abandonada e o objeto não desperta interesse. No amplo espectro de possibilidades de psicologias profundas, das mais ortodoxas às mais liberais, a fenomenologia da iluminação ainda faz passar o barateamento do fenômeno como sua tradução.

Pelo que se pode perceber, a língua não metafísica terá que secundar a metafísica se quiser obter êxito em fazer uma tradução deste fenômeno que ainda não se silenciou diante do mundo, pois faz parte de duas grandes tradições que desenvolveram poderosas culturas de iluminação. A iluminação recai sob as categorias não metafísicas pois ela mesma se propõe estágios de negação das dualidades Eu-mundo, de superação do mundo e sua liquidação através da iluminação; a iluminação conduz à desmundanização e também conduz para fora de toda doutrina do ser.

A doutrina budista assim como a gnose cunharam nomes poderosos para o estado mais elevado de ausência do mundo. Assim são os termos moksha e nirvana para o budismo, e seu equivalete preciso é o pleroma gnóstico. Ambos exigem que se supere qualquer hálito efetivo de energia de vício e fuga, pois estes são estados ainda mundanos e devem ser completamente neutralizados. Isto explica a unidade budista de samsara e nirvana (roda de nascimentos e quietude); pela mesma razão a gnose ensina a unidade de pleroma e kenoma (plenitude e vacuidade). Ambos são o ponto máximo de equilíbrio entre a “liberdade de” com a “liberdade para”.

Isto posto, a língua não metafisica da psicanálise-antropología deverá buscar sua expressão acosmista não somente para o ponto culminante, o limite, mas também para os acosmismos cotidianos.

O acosmismo é um tema de toda psicologia. Se as doutrinas psicológicas admitirem que o acosmismo é um complemento necessário para elas, “el viejo discurso de iluminación pierde mucha de su extravagancia”(42). A psicologia pode perceber que se pratica cotidianamente a arte de estar e de não estar no mundo. A diferença do acosmismo iluminado para aquele cotidiano é que o iluminado exige um estado de plenitude de consciência (43)

Assim, é necessário que toda psicologia assimile o acosmismo como um tema permanente sabendo inclusive que se pratica cotidianamente o acosmismo como uma arte de estar e não estar no mundo. Isto é posto de manifesto pela neuropsicologia como um aparato de defesa, pois a vigília permanente seria em verdade uma tortura permanente. Assim, pois, Sloterdijk propõe que a doutrina psicoanalítica do mecanismo de defesa contra a vigília permanente deve compreender-se “como un caso especial de la fenomenología general de la ausencia de mundo y su irrupción a través de lo real emergente” (44).


Peter Sloterdijk

Uma tentativa de conclusão...

À guisa de conclusão, gostaríamos de propor que este percurso por alguns textos de Sloterdijk parece apontar para um pano-de-fundo- gnóstico de seu pensamento que não é somente um caso de estilo. Sua metáforica esferológica, sua análise do mecanismo telecrático de poder em um mundo esférico que se propõe como auto-abrigo em resposta e como proteção contra o externo e contra um nada, além do conceito neoplatônico de emanacionismo para explicar o poder e a constituição da mais duradoura estrutura de poder emanacionista de centro esférico, que é a Igreja Católica, sua avaliação da língua antiga da metafísica casuísta do gnosticismo e do budismo, indicam que a temática do pessimismo gnóstico toma um caráter novo com sua linguagem não metafísica. Entretanto, em que pese seu posicionamento na linguagem não metafísica da psicanálise e da antropologia histórica, seus temas e sua perspectiva psicológica assim como o tema do acosmismo gnóstico e sua metafórica esferológica soam como uma cosmologia gnóstica em novos termos.

Nos parece que realmente se pode perceber que os motivos do autor indicados no prólogo do livro “Extrañamiento del Mundo” não ficaram restritos ao próprio livro, mas que permanecem em seu horizonte teórico como cenário e base para todo o desenvolvimento conceitual a que ele se propõe.

***

Investigación realizada por el Licenciado José Luiz Bueno durante el 'Seminario Sloterdijk', Programa de Postgrado del Instituto de Filosofía de la PUCV, dictado por el Prof. Dr. Adolfo Vásquez Rocca, 1º Semestre Académico, 2007.




* Lic. José Luiz Bueno

Licenciado en Filosofia por la Universidade de São Paulo (Brasil)

Estudiante de Postgrado en Filosofia por la Pontifícia Universidad Católica de Valparaiso (Chile)

Programa de Postgrado. Instituto de Filosofía de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Seminario Nietzsche – Sloterdijk Prof. Dr. Adolfo Vásquez Rocca


Membro do Núcleo de Estudos em Mística e Santidade (antiguo Grupo de Pesquisa “Religião: Teoria e Experiência”) del Departamento de Estudos Pós-Graduados de la Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, desde el 2004.

Ponencia en el I Congreso Brasileño de Filosofía de la Religión, en Brasilia, Brasil, en el año 2005, con el Título “As Conseqüências de se entender o pensamento de Spinoza como monista”.


Artículo en la Revista Agnes - Cadernos de Pesquisa em Teoria da Religião, publicação do NEMES – Núcleo de Estudos em Mística e Santidade (antigo Religião, Teoria e Experiência), certificado pelo CNPq - do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUCSP, con el título “Deus e Liberdade – (Dios y Libertad: Spinoza en el pensamiento político contemporáneo)".

Artículo:

Las influencias gnósticas en Peter Sloterdijk; medios puros, telecracias y la metafísica de la telecomunicación.


Notas

1 Las influencias gnósticas en Peter Sloterdijk; medios puros, telecracias y la metafísica de la telecomunicación.
2 SLOTERDIJK, Peter. Extrañamiento del Mundo. Pre-Textos, Valencia. 1998.
3 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferología. Siruela, Madrid. 2004.
4 Por “epicentro” entende-se aqui não o centro absoluto da esfera mas um tipo de centro secundário, distinto do centro absoluto, mas que tem certa força própria e consciência tanto de seu deslocamento em relação ao centro absoluto como de sua capacidade de gerar movimento.
5 SLOTERDIJK, Peter, Esferas II, op.cit., pp 87ss
6 Os exemplos seguintes explicitarão a idéia de serem “utilizados”
7 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II, op.cit., pg 92
8 Idem, pg 97
9 Idem, pg 98
10 Ibid
11 Ibid.
12 Ibid.
13 Idem, Pg 102
14 Idem, Pg 106
15 Idem, pg 106.
16 Idem, pg 107
17 Idem, pg 115
18 Idem, pg 117
19 Idem , pg 123
20 Idem, pg 586
21 Idem, pg 588
22 Idem, pg 592
23 Idem, pg 593
24 Idem, pg 594, apud Kierkegaard.
25 Idem, pg 614
26 Idem, pg 614
27 Idem, pg 616
28 Idem, pg 627
29 Idem, pg 630
30 Chauí, Marilena. Política em Espinosa. Companhia das Letras, São Paulo, 2003
31 Idem, pg 645
32 Extrañamiento del Mundo, Cap. V, “¿Es el mundo negable? Sobre el espíritu de India y la Gnosis Occidental” – Pg 229ss
33 Idem, pg 230
34 Idem, pg 232
35 Idem, pg 233
36 Idem, pg 234
37 Idem, ppg 234-235
38 Idem, Pp 235-236
39 Idem, pg 250
40 Idem, idem
41 Idem, pg 252
42 Idem, pg 257
43 Idem, pp 255-256
44 Idem, pg 258
Revista Observaciones Filosóficas - Nº 5 / 2007


Abstract

The german philosopher Peter Sloterdijk in one of his mostly known books, “Extrañamiento del Mundo” makes a proposition to update a old gnostic subject in order to achieve a contemporaneous theory of Man. He also proposes to update the contemporary non-metaphisical language with the help of the old metaphisical language, mainly the one used by the western gnostic tradition, in order to make the contemporaneous one able to deal with the human experience of denial of the world. So we propose to make an investigation in some of our german philosopher’s texts to evaluate how far goes the influence of those gnostic concepts over his thought.





segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Quem sou eu ?

Baghavan Sri Ramana Maharshi

Opensamento-eu é a fonte de todos os pensamentos.


A mente só vai se dissolver através da autoinvestigação "Quem sou eu?". O pensamento "Quem sou eu?" destruirá todos os outros pensamentos e depois destruirá a si mesmo também. Se outros pensamentos surgirem, devemos perguntar a quem esses pensamentos ocorrem, sem tentar completá-los. Que importa quantos pensamentos surgem? Na medida em que cada pensamento surgir, devemos estar vigilantes e perguntar para quem ele ocorre. A resposta será "para mim".
Se você perguntar "quem sou eu?", a mente então voltará à sua Fonte (de onde surgiu). O pensamento que surgiu também desaparecerá. À medida que você praticar dessa forma mais e mais, o poder da mente de permanecer em sua Fonte aumentará.
Alimentando-se com uma quantidade moderada de comida sãttvika (pura) - o que é superior a qualquer outra regra e regulação de autodisciplina - a qualidade sãttvika ou pura da mente crescerá e isso ajudará a autoinquirição.
Embora os apegos sensoriais, antigos e imemoriais, possam surgir sob forma de incontáveis vãsanãs (tendências mentais), assim como as ondas surgem no mar, todos eles serão destruídos na medida em que a meditação (dhyãna) avançar. Devemos nos agarrar sem cessar à meditação do Ser, sem duvidar da possibilidade de erradicar todas essas vãsanãs e de só o Ser permanecer. Por mais pecadora que uma pessoa possa ser, se ela parar de se lamentar "Ai de mim que sou um pecador! Como posso eu alcançar a libertação?" e, abandonando até mesmo o pensamento de que é pecadora, se dedicar zelosamente à autoinquirição, ela com certeza realizará o Ser (Atman).
Se o ego estiver presente, tudo o mais também existirá. Se estiver ausente, tudo o mais desaparecerá. Como o ego é tudo isso, investigar a sua natureza é a única forma de abandonar todo apego.
Controlando a fala e a respiração, e mergulhando fundo em nós mesmos, como alguém que mergulha na água para recuperar algo que nela caiu, devemos, por meio de um insighi aguçado, descobrir a fonte de onde surge o ego.
A investigação, que é o caminho da Sabedoria (Jñãna), não consiste em repetir verbalmente "eu, eu", mas em buscar, por meio de uma mente profundamente interiorizada, de onde o "eu" surge. Pensar "Eu não sou isso", "Eu sou aquilo" pode ajudar, mas não constitui a inquirição em si.
Quando questionamos dentro da nossa mente "Quem sou eu?" e chegamos ao Coração, o "eu" sucumbe e imediatamente outra entidade se revela proclamando "Eu-Eu". Muito embora ela também surja dizendo "eu", não se trata mais do ego, mas sim da Existência Única, perfeita.
Se investigarmos incessantemente a forma da mente, descobriremos que não existe algo chamado "mente". Este é o caminho direto aberto a todos.
A mente é constituída apenas de pensamentos, e para todos eles a base ou fonte é o pensamento-"eu". O "eu" é a mente. Se nos voltarmos para dentro perguntando pela Fonte do "eu", o "eu" sucumbe. Esta é a investigação da Sabedoria.
Onde o "eu" se dissolve, outra entidade emerge como "Eu-Eu" por conta própria: é o Ser Perfeito.
É inútil remover as dúvidas [uma a uma]. Se esclarecermos uma, outra surgirá e não haverá fim para elas. Todas as dúvidas cessarão apenas quando quem duvida e sua Fonte forem encontrados. Procure a Fonte do responsável pela dúvida e você descobrirá que ele na realidade não existe. Se o questionador cessar, as dúvidas também cessarão.
Como a Realidade é você mesmo, não há nada a realizar. Todos tomam o irreal por real. É preciso que você desista de tomar o irreal por real. A finalidade de toda meditação ou repetição de mantras (japa) é apenas isso - abrir mão de todos os pensamentos referentes ao não Eu; é desistir de todos os pensamentos e concentrar-se num só. O objetivo de toda prática (sãdhana) é fazer com que a mente fique unifocada, concentrando-a num só pensamento e assim excluindo os demais. Fazendo isso, no, final até mesmo esse pensamento único irá embora e a mente se extinguirá em sua fonte.

Quando inquirimos "Quem sou eu?", o "eu" investigado é o ego. Também é esse "eu" quem faz a autoinvestigação (vichãra). O Ser não tem inquirição. É o ego que faz a investigação. O "eu" sobre o qual a investigação é feita também é ego. Como resultado da investigação, o ego deixa de existir e descobrimos que somente o Eu Real existe.

Qual a melhor maneira de matar o ego? Para cada um o melhor caminho é aquele que parece mais fácil ou que tem maior apelo. Todos os caminhos são igualmente bons, na medida e que conduzem ao mesmo objetivo: dissolver o ego no Eu Real. O que o devoto (bhakta) chama de entrega, aquele que faz investigação (vichara) chama de Sabedoria (Jñãna). Ambos estão tentando levar o ego de volta à Fonte da qual ele surgiu e fazê-lo ser absorvido por ela.
Pedir que a mente mate a si mesma é como fazer do ladrão um policial. Ele irá com você e fingirá prender o ladrão, mas nada será ganho. Portanto, volte-se para dentro, veja de onde surge a mente e ela deixará de existir.
A respiração e a mente surgem da mesma fonte e quando uma delas é controlada, a outra também fica controlada. De fato, no método investigativo - no qual, aliás, a pergunta "De onde eu vim?" seria mais correta do que "Quem sou eu?" - não estamos simplesmente tentando eliminar, dizendo "não sou o corpo, nem os sentidos" e assim por diante, visando alcançar a realidade última, mas sim estamos procurando descobrir onde surge o pensamento-"eu" ou ego dentro de nós. O método contém em si - de forma implícita - a observação da respiração.
Quando observamos de onde o pensamento-eu surge, estamos observando também a fonte da respiração, já que tanto o pensamento-"eu" quanto a respiração provêm da mesma Fonte.
O controle da respiração pode servir como uma ajuda, mas por si mesmo nunca pode levar ao objetivo. Enquanto você o pratica mecanicamente, procure manter a mente alerta, lembrando do pensamento-eu e da busca pela sua Fonte. Então você descobrirá que o pensamento-eu surge do lugar no qual a respiração desaparece. Eles desaparecem e emergem juntos. O pensamento-"eu" também submergirá junto com a respiração. Simultaneamente, um outro "Eu-Eu" -luminoso e infinito - emergirá, e será constante e inquebrantável. Este é o objetivo, o qual recebe diferentes nomes: Deus, Eu Real, Kundalini , Shakti, Consciência, etc.
"Quem sou eu?" não é um mantra. Significa que você deve descobrir onde em você surge o pensamento-"eu", que é a fonte de todos os outros pensamentos. Mas se você achar que o caminho da investigação é difícil demais, continue a repetir "eu-eu", e isso o levará ao mesmo objetivo. Não há nenhum mal em usar o "eu" como um mantra. Trata-se do primeiro nome de Deus [Eu Sou].
Peço que veja onde o "eu" surge em seu corpo; mas realmente não é muito correto dizer que o "eu" surge e dissolve-se no Coração no lado direito do peito. O Coração é outro nome para a Realidade e não está nem dentro nem fora do corpo. Não pode haver nenhum dentro e fora para Ela, já que a Realidade apenas é. Por "Coração" não me refiro a nenhum órgão fisiológico, nenhum plexo de nervos ou qualquer coisa do gênero.
Mas enquanto a pessoa se identificar com o corpo e pensar ser o corpo, ela é aconselhada a ver no corpo onde o pensamento-"eu" surge e volta a se dissolver. Deve ser no Coração, no lado direito do peito. Todo homem de qualquer raça, língua ou religião, quando diz "eu", aponta para o lado direito do peito para referir-se a si mesmo. Isso é verdadeiro em todo o mundo.
Portanto, esse deve ser o lugar. E observando-se de forma perspicaz o constante surgimento do pensamento-"eu" no estado de vigília e de seu desaparecimento no sono, podemos ver que surge no Coração no lado direito.

Saiba primeiro quem você é. Isso não requer escrituras ou erudição. É simplesmente experiência. O estado de Ser está aqui e agora o tempo todo. Você perdeu contato consigo mesmo e está pedindo orientação aos outros. O propósito da espiritualidade é voltar a mente para dentro. Se você conhecer a si mesmo, nenhum mal poderá lhe acontecer. Como você me perguntou, eu estou lhe dizendo (verso do Kaivalya Navaneeta). O ego só surge agarrando-se a você (o Eu Real). Permaneça no Eu Real e o ego desaparecerá. Até este momento o sábio estará feliz dizendo: "Eis aí", e o ignorante perguntando: "Onde?". A regulação da vida, tal como levantar-se em uma hora determinada, tomar banho, praticar repetição de mantras, etc., tudo isso é para quem não se sente atraído pela auto investigação ou não é capaz de fazê-la. Mas para aqueles que podem praticar esse método, todas as regras e disciplinas são desnecessárias. Sem dúvida é dito em alguns livros que devemos cultivar uma virtude após outra e assim nos prepararmos para a Libertação (moksha); mas para os que seguem o caminho da Sabedoria ou da investigação (Jñãna ou vichãra), sua sãdhana é por si só suficiente para adquirir todas as qualidades divinas. Eles não precisam fazer mais nada.
O que é [o mantra] Gayatri? Na verdade, quer dizer "Deixe-me concentrar Naquele que tudo ilumina".







Fonte: Capítulo 4, intitulado "Quem Sou Eu" , do livro Pérolas de Bhagavan - do discípulo de Sri Ramana Maharshi, A. Devaraja Mudaliar. Esse texto encontra-se reunido no volume editado pela Editora Teosófica, "Pérolas de Sabedoria - Vida e Ensinamentos de Sri Ramana Maharshi".



quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Reconhecendo o Ser


Mooji, você poderia explicar a auto-inquirição? Como de fato eu começo?

Comece assim: "Eu sou" - Este é o reconhecimento e o conhecimento mais natural. O sentimento de existir é espontaneamente sentido em você como "eu sou". Ninguém lhe ensinou isto. Esteja consciente desta simples intuição sem associá-la a outros pensamentos. Sinta como é estar simplesmente presente, neste instante, sem se agarrar a qualquer intenção. Não toque em nenhum pensamento de estar fazendo algo especial. Mantenha-se interiormente quieto. Se, de repente, uma onda de pensamentos vier, não entre em pânico.

Não é preciso controlá-los ou suprimi-los - simplesmente deixe-os brincar sem o seu envolvimento.


Observe com desapego. Permaneça vazio de intenção.


Mantenha-se em silêncio.


Imagine que você está parado em uma plataforma na estação do trem. Um a um os trens vêm, param, as portas se abrem, as portas se fecham, eles continuam. Você não precisa entrar. Desta forma, apenas observe a atividade do pensamento aparecendo na tela da consciência sem se conectar a ela. Não se envolva. Você perceberá que os pensamentos e as sensações se movem por si sós, sem serem forçados. Permaneça neutro. Esteja com a Pura Consciência sendo a própria Pura Consciência. Sinta a respiração movendo-se sem esforço, sem nenhuma vontade ou dificuldade.


Observe os sentidos funcionando, o sentido de fora ou dentro, qualquer movimento simplesmente "acontecendo" por si só, sem planos ou esforço.


O que quer que surja como pensamento, sentimento, movimento ou sensação é silenciosamente observado, só que agora existe menos interesse, menos atração. Tudo está surgindo; o seu ser não é estimulado. Tudo isso é gentilmente observado. Agora, até mesmo o sentimento de ser - o sentimento "eu sou" - está dentro desta Pura Consciência. Não faça esforço maior do que é exigido. Você está aqui. Aquilo, que não está fazendo ou desfazendo, nem dirigindo a atividade, nem sendo afetado por ela, que está naturalmente consciente, embora sem interesse: isto é o seu verdadeiro Ser.


Não está atrás ou na frente, nem em cima nem embaixo - porque não é um fenômeno. É o Ser sem localidade, sem nascimento, sem limites.


Agora, observe o observador: "Quem sou eu?" Investigue internamente, mas se mantenha quieto com uma atenção alerta. Não deduza nenhuma resposta ou indício; uma resposta seria - e apenas poderia ser - uma opinião, uma ideia de outro conceito. Não se amarre a nenhum conceito. Retire a atenção dos objetos e direcione-a para o sujeito que vê. O que é e onde está o observador? Permaneça silencioso e neutro. A observação deve estar agora mais focada.


Agora, observe novamente o sentimento "eu sou". O que é "eu"? De onde ele surge? Observe. O que você encontra?



Não pode ser encontrado. Não existe.



Não pode ser encontrado objetivamente. No entanto, a intuição ou sentimento "eu" continua presente. É o fato de o "eu" não ser encontrado que prova sua existência não-objetiva. O "eu", ou "eu sou", é descoberto como sendo sem forma; uma intuição surgindo do vazio, no vazio, e como o vazio. Sem uma investigação focada, o "eu" parece ser uma entidade contida em um corpo e em uma mente condicionada. Quando se busca o "eu" como uma forma, descobre-se que ele é meramente um pensamento; a forma do "eu" é pensamento. Sem forma, o "eu" surge do vazio como a sensação intuitiva da "presença" subjetiva.


Agora, esse "eu" é percebido como sendo presença sem forma. O que reconhece isto? Isto possui uma forma?


Investigue assim.


Obrigado, Mooji.



Você é muito bem-vindo.






(extraído do livro: Antes do Eu Sou - Diálogos com Mooji - O Reconhecimento do Nosso Ser Original" - Ed. Qualitymark)