domingo, 31 de agosto de 2008

Auto-consciência burocrática


Longe de examinar seus pressupostos filosóficos gerais, todas as suas questões até cresceram no chão de um determinado sistema filosófico, o materialismo histórico. Jaz uma mistificação, não só em suas respostas, mas já nas perguntas mesmas. Esta dependência para com o materialismo histórico é a razão pela qual nenhum desses críticos mais recentes sequer tentou uma crítica mais abrangente do sistema todo, por mais que cada um deles afirme estar além de Marx. A polêmica deles contra Marx e entre si mesmos se limita a cada um deles extrair um aspecto do sistema e voltá-lo tanto contra o sistema inteiro quanto contra os outros aspectos extraídos pelos outros.


(texto baseado em: Karl Marx, A Ideologia Alemã)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Krishnamurti


  • "Mas há aqueles que matam: matam por desporto, por divertimento, matam para obter lucro – por exemplo, a indústria da carne. São os mesmos que destroem a Terra, espalham gases venenosos, poluem o ar, as águas, e poluem-se uns aos outros. É o que estamos a fazer à Terra e a nós próprios. Viver sem causar sofrimento ou morte a outros significa não matar um ser humano nem qualquer animal, por desporto ou para sustento."

  • "A vida inteira, a partir do momento em que nascemos, é um processo de aprendizado."

  • "Se realmente entendemos o problema, a resposta virá dele, porque a resposta não está separada do problema."

  • "A verdadeira revolução não é revolução violenta, mas a que se realiza pelo cultivo da integração e da inteligência de entes humanos, os quais, pela influência de suas vidas, promoverão gradualmente radicais transformações na sociedade."

    ("A educação e o significado da vida pg 93.")

  • "Não há nada que conduza à verdade. Temos que navegar por mares sem roteiros para encontrá-la".

  • "A escolha é onde existe confusão. Para a mente que vê claramente, não há necessidade de escolha, há ação. Penso que muitos problemas resultam de dizer que somos livres para escolher, a escolha significa liberdade. Pelo contrário, eu diria que a escolha significa uma mente confusa e, por conseguinte, não livre."

    (Uma forma diferente de vida.)

  • "As idáias não são a verdade, a verdade é algo que deve ser testado diretamente, de momento a momento. Não é uma experiência desejada, que é pura sensação. Só quando somos capazes de transcender o feixe de idéias, que é o eu, que é a mente, que tem uma continuidade parcial ou integral; só quando somos capazes de ultrapassá-lo, quando o pensamento está em absoluto silêncio, só então existe um "estado de experimentar". Pode-se então saber o que é a verdade."

(este trecho foi obtido de : http://books.google.com/books?id=NhCt-CAlKq4C&pg=PA208&lpg=PA208&dq=%22As+id%C3%A9ias+n%C3%A3o+s%C3%A3o+a+verdade,+a+verdade+%C3%A9%22&source=web&ots=CTrKQDTf3q&sig=Mt5qg7_ekPb1HrReFBw9G0ihlY4&hl=pt-BR&sa=X&oi=book_result&resnum=1&ct=result#PPA8,M1

(A busca da felicidade.)

  • "Na sua forma atual, a religião é a própria antítese da verdade."

    (Uma forma diferente de vida.)

  • "Para compreender a verdade tem de ter uma mente muito precisa e clara, e não uma mente inteligente, mas capaz de ver sem distorção, uma mente aberta e inocente."



    Obtido em http://pt.wikiquote.org/wiki/Jiddu_Krishnamurti

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Entrevista com Regis Debray




“A escala dos valores é hoje a escala da renda”.


O jornal francês La Croix, publicou uma série de reportagens e entrevistas sobre os Dez Mandamentos das Escrituras Judaicas. Para comentar o décimo mandamento, “não desejar a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu asno: nem alguma coisa que pertença ao teu próximo” (Êxodo, 20,17), o jornal entrevistou Régis Debray, intelectual francês, ex-guerrilheiro, com Che Guevara, na Bolivia, e ex-ministro do governo Mitterand, socialista.

A entrevista com Régis Debray, escritor, aos cuidados de Bernard Gorce foi publicada pelo jornal La Croix, 08-08-2008.

Eis a entrevista.

A revista que você dirige, Medium, é dedicada neste mês ao “dinheiro patrão” (1). Nossa sociedade mudou a tal ponto que o dinheiro reina aí sobre tudo?

O dinheiro, até um período recente, era um meio. Agora é um fim em si. O servo tornou-se patrão. O número especial de Medium não dá um juízo moral sobre esta inversão, mas apresenta os vários aspectos do dossiê, para que cada um tire suas conclusões. O desenvolvimento e a riqueza eram outrora fundados sobre a produção de bens materiais. Por causa da ‘financeirização’ da economia, a produção é atualmente subordinada ao rendimento e à circulação monetária.

O dinheiro patrão não tem falta de servos...

Pela primeira vez na história de nossa civilização, o homem exemplar, o modelo a seguir, não é mais um homem desinteressado. O cavaleiro da Idade Média, o cavalheiro do século dezenove, o pároco a la Bernanos ou o militante político... Todos estes modelos de identificação haviam se mantido à distância do dinheiro. Desde quando estas figuras exemplares desapareceram, o índice de notoriedade se mensura unicamente ao nível de riqueza. O homem exemplar por excelência é agora o homem de negócios. Não o industrial, mas o comunicador que faz dinheiro na internet. A escala da renda é a escala dos valores de hoje.

Não deveríamos alegrar-nos com o fim de certa hipocrisia?

Nosso velho país católico era protegido por sua “verecúndia” neste campo. Que tinha pelo menos um mérito: o dinheiro não era um valor e o financeiro estava presente somente para gerenciar a administração. Mas, o dinheiro perdeu o seu pudor e se tornou o árbitro das elegâncias, das liberdades e das utilidades sociais. Vejo nisto o sinal de uma sociedade que caminha de pernas para o ar.

O reino do dinheiro patrão significa um declínio do cristianismo?

Não é preciso universalizar. Nos Estados Unidos existe um evangelismo da riqueza. Os protestantes são mais abertos do que os católicos sobre este argumento, mas também mais agnósticos, portanto na espera de sinais de eleição. Para os americanos, o dinheiro ganho é dinheiro doado por Deus. Junto a nós, ao invés, é considerado mais ou menos dinheiro roubado. É verdade que na França o refluxo do cristianismo, o seu destaque da sociedade, abre a porta a uma corrida desenfreada das mais absurdas.

Não será que a França esteja simplesmente se americanizando?

Pode-se fundar uma sociedade unicamente sobre o dinheiro. Os Estados Unidos construíram a identidade americana tanto sobre o lucro como sobre uma teologia do povo eleito. O moto sobre o dólar “In God we trust” [Em Deus nós confiamos] exprime uma dimensão escatológica que serve de substrato ao “enriquecei-vos”. O que há de terrível na americanização da Europa em geral e da França em particular é que nós importamos o bilhete verde, o culto do fiduciário, sem a fé em Deus, o materialismo sem o espiritual. Por isso se assiste à deslocalização do corpo social, à ampliação da disparidade entre ricos e pobres, à luta de cada categoria social pela manutenção dos próprios privilégios. Nós nos encontramos naquilo que o sociólogo Émile Durkheim chamava o estado de anomia, a ausência de regras coletivamente aceitas, a recusa de uma subordinação dos interesses particulares a um bem comum.

Uma sociedade pode liberar-se da lei e da autoridade moral?

A civilização implica uma repressão organizada da instintividade. A civilização é a felicidade domada, padronizada, sublimada. A recusa da liberação sem inibições das pulsões sádicas, egoístas, agressivas. Quando se estabelece como ideal a felicidade como satisfação maciça do ego, chega-se à ferocidade. Estaríamos errados se esquecêssemos que a civilização exige sempre um compromisso ou uma transação entre uma força vital, nossas pulsões, e a força inibidora de uma moral.

A moral é a arte de transformar um sofrimento em satisfação, uma punição em recompensa. A civilização republicana laica havia sublimado as pulsões com o amor pela pátria, o culto do interesse geral, a instrução na escola. Tudo isso desmorona. Entramos num processo de “contra-civilização”.

O senhor diz que o maio de 1968 tem sua parte de responsabilidade nesta evolução.

Os participantes de 68 quiseram fazer comunidades, mas sem regras. É impossível. O primeiro dos manuscritos de Qumran é a regra da comunidade. Maio de 68 significou, de positivo, a emancipação feminina e a da sociedade civil. Mas, de negativo, introduziu a lei do mais forte, a guerra de todos contra todos. Não se constrói a “civilização” sobre o “tudo do ego”, sobre a idéia de uma felicidade sinônimo de apagamento infinito das próprias vontades.

O que pode fundar uma moral comum?

É a grande pergunta do século vinte e um, à qual não se pode responder às pressas. O século que começa será aquele da tribalização, das minorias, dos separatismos. A questão será, portanto, de saber o que pode unir todas estas tribos, confederá-las. A tribalização é o preço político-cultural da globalização econômica. E no momento assistimos a um extraordinário movimento centrífugo. Todos os etnocentrismos, todos os comunitarismos ganham terreno. Vai-se em direção a uma nova Idade Média? Podemos perguntar-nos isso. Hoje, alguns se asseguram voltando-se à “religião civil” dos direitos do homem, mas eu não creio nisso. Mais ainda do que as outras religiões, ela conta com mais comunicadores do que praticantes, mais oradores do que pessoas agentes. Na falta de algo melhor ela se tornou, em todo o caso, hoje, o dogma comum das civilizações ocidentais.

O que lhe inspira o decálogo? Pode-se voltar à lei de Moisés como a uma espécie de matriz para uma moral comum?

Sim, na condição de não fazer disso um código tribal. “Não matar”, por certo, mas isto significava originariamente: “Não matar o teu coirmão na fé, o teu irmão de sangue”. A interpretação edulcorada, ecumênica do Decálogo, que foi no início uma espécie de deontologia interna, continua sendo um belo ideal, mas não esqueçais que após o “Não matar” de Êxodo 20, vem imediatamente a pena de morte para os sacrílegos e os sodomitas. A única máxima universal, de Confúcio à tradição judaico-cristã, é a lei da reciprocidade: não fazer aos outros aquilo que não quererias que fosse feito a ti.

O último mandamento diz respeito precisamente à proibição do desejo, da cobiça. Isso não está em contradição com a mensagem publicitária que exacerba o desejo de posse?

O dinheiro patrão só tem uma lei: o lucro máximo. Não lhe importa nada referente à moral. Cabe a nós guiar este cavalo selvagem que galopa sobre todos os cartazes publicitários. Opondo-lhe ao máximo o melhor.

Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=16154

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Meditação, por Huberto Rohden




Transcrição do Lp, gravado em 1965 por HUBERTO ROHDEN




PARTE 1



Meus amigos

Vamos sair agora das 3 dimensões dos ruídos tradicionais e vamos entrar na zero dimensão do grande silêncio.

Do silêncio dinâmico da plenitude.

A voz do silêncio nos fala: o ruído é dos homens, o silêncio é de Deus.

Quanto mais silencioso o homem se torna, mais se aproxima de Deus; e o silêncio absoluto que parece ser ausência e vacuidade é presença, é plenitude. É a fonte das grandes revelações, das inefáveis inspirações. É nas profundezas do silêncio dinâmico que o homem descobre a verdade. A verdade libertadora sobre si mesmo, sobre Deus, sobre o universo.

Universo - um em diversos, uma só causa real e muitos efeitos realizados. E quando o homem atinge esse uno e esse único do centro, começa ele a compreender os diversos e os múltiplos de todas as periferias. É no abismo do silêncio creador que o homem descobre o segredo da harmonia consigo mesmo, da harmonia com os seus semelhantes e da harmonia com a própria Divindade.

Descobre o Deus, do mundo no mundo de Deus. Unidade sem diversidade é monotonia, diversidade sem unidade é caos. Mas unidade na diversidade é harmonia, é o uni-verso, a harmonia cósmica.

Meus amigos, neste momento solene e sagrado, vamos submergir no oceano do grande silêncio, não do inconsciente, mas, do pleniconsciente.

Depois de fecharmos as portas a todos os ruídos do ego físico, mental e emocional, a todos os sentimentos, pensamentos e desejos, abramos de par em par, as portas da consciência espiritual, entremos agora no terceiro céu, no vasto nirvana da realidade suprema. Eclipsou-se o mundo objetivo das aparências efêmeras, despertou o mundo subjetivo da verdade eterna. Para além de tempo e espaço, entra o homem no eterno e no infinito.

E ali percebe ele, ditos indizíveis, algo que lábios humanos não podem dizer, que nem o pensamento pode analisar, os ditos indizíveis da verdade libertadora.

E a alma começa o seu misterioso solilóquio com o infinito, o eterno.

E o solilóquio se transforma aos poucos em colóquio.

O monologo passa a ser diálogo, porque a alma sente a presença de alguém, a onipresença da Divindade, a imanência do infinito em todos os finitos, o espírito do Deus do mundo que habita em todos os mundos de Deus.

O vasto deserto do silêncio se transforma num oásis transbordante de vida, beleza e beatitude. E a alma habita feliz neste Éden, e sabe por intuição imediata o que pensamento algum lhe poderia revelar através dos meandros das análises intelectuais.

O homem sabe finalmente por intuição imediata e direta o que é Deus, sabe o que é ele mesmo, sabe o que é o universo.

E este saber esperiencial é beatitude, é vida eterna, é imortalidade. E quando o homem regressa desse longínquo nirvana da verdade para o propínquo sansara das aparências de cada dia, leva ele consigo um reflexo dessa luz, um eco dessa voz, uma vibração dessa força que ele viveu nas profundezas do terceiro céu.

E em contato o infinito, com o eterno, volta ele, a tomar contato com todos os finitos e temporários; e a sua vida diária se transforma aos poucos pela leveza e luminosidade desses mundos que ele contemplou, no grande além de fora que é também o seu grande além de dentro.

E ele diz a si mesmo: "Eu e o Pai somos um. O Pai está em mim e eu estou no Pai. O infinito vive em mim e eu vivo no infinito. No meu intimo ser eu sou o que Deus é, por isso no meu externo agir, quero também agir assim como Deus age."

Finalmente ele descobriu o que quer dizer "o reino dos céus está dentro de vós."

E a experiência dessa paternidade única de Deus se manifesta na vivência da fraternidade universal dos homens.

A grande vertical da mística do primeiro mandamento se concretiza na vasta horizontal da ética do segundo mandamento: ''Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças- e amarás ao teu próximo como a ti mesmo.''

E ele nunca mais pergunta a si mesmo, quem é o meu próximo, porque todas as creaturas, mesmo as mais distantes se tornaram próximas, desde que todas as distâncias da ignorância foram eliminadas pela proximidade da sapiência.

Tempo e espaço deixaram de existir em face da imanência de Deus, do Deus do mundo em todos os mundos de Deus.

Ele sabe que todas as creaturas são os seus próximos. E quando o homem descobre o reino de Deus dentro de si mesmo, aqui e agora, não espera mais a inauguração do reino de Deus para depois da morte, em algum futuro ignoto, em alguma distância longínqua.

O seu céu começa aqui e agora pela autodeterminação do seu livre arbítreo, e não pelo alo-determinismo de algum fator externo.

Nascer, viver e morrer, não resolvem o problema central da existência humana, porque são coisas que apenas nos acontecem, por obra e mercê de circunstâncias externas.

Nascemos, graças a nossos progenitores, vivemos mercê dos alimentos que assimilamos, e morreremos em virtude de um acidente, de uma doença ou da velhice. Nada disto nos redime porque nada disto é obra nossa. É algo alheio a nós, são alo- determinismos de fatores externos. Meu é somente o que eu mesmo produzo: a autodeterminação do meu eu espiritual, do meu livre arbítreo. Meu, sou somente eu, aquilo que eu sou interna e eternamente.

Nascer, viver e morrer não me redimem da irredenção de mim mesmo. O que me redime é um viver diferente, uma vivência mais intensa. A experiência central da verdade sobre mim mesmo, o meu grande Eu sou, o renascimento pelo espírito, como dizia o Divino Mestre.

Se eu intensificar devidamente a minha vivência experiencial, e se esta experiência da verdade sobre mim mesmo atingir o seu clímax, então serão abolidos o morrer e o nascer. E só o viver, o grande e indestrutível viver, a vida eterna, a integração da minha vida individual na vida universal é que continuarão a existir.

Nem o conformismo com as misérias da vida presente, nem o escapismo para um céu, para uma zona longínqua, para além da morte, nada disto resolverá o problema central da existência humana.

Somente o transformismo, a total transformação de todas as minhas materialidades pelo poder da espiritualidade é que resolverá o problema da minha vida. ''O reino dos céus'', disse o divino Mestre, é semelhante a um fermento que alguém tomou e ocultou em 3 medidas de farinha até ficar tudo levedado. O fermento da experiência divina deve levedar, transformar todas as massas da minha existência humana, aqui e agora, e continuar para sempre. Nada de justaposição, nada de substituição, somente a total permeação, e pela interpenetração é que resolve o problema.

O reino do Cristo, escreve Frederic Sandersno seu livro In The Power of The Infinite: ''O reino do Cristo não jaz em alguma região longínqua; o reino de Deus não é condicionado por tempo e espaço. Muitos pensam que a vida terrestre com o seu sofrimento e as suas angústias, seja um estágio preliminar para a vida eterna e que o homem deva suportar as misérias desta vida até que soe a hora da libertação. Entretanto o reino dos céus ficará distante enquanto nós o considerarmos distante. E, contudo é agora mesmo que vivemos no reino de Deus, e não há nenhum outro mundo. Somente o nosso consciente obscurecido é que nos torna cegos para as glórias do mundo espiritual, no qual vivemos.

O homem, que tem a permanente consciência da presença de Deus, vive agora mesmo na harmonia do seu reino, numa atitude interna inatingível pelas vicissitudes dos fenômenos externos. Não podemos descrever a um surdo as belezas da música, nem podemos dar a um cego idéia das cores- e da mesma forma não podemos fazer compreender as glórias do reino do Cristo a um incrédulo que não as tenha experimentado pessoalmente.

Da cadeia e do alcance dos seus próprios pensamentos tece o homem dia a dia o seu céu e o seu inferno. Céu e inferno não são estados futuros que nos esperem depois da morte. A morte não modifica em nada o estado do homem; e os chamados mortos não estão mais perto de Deus do que os vivos.

A morte não representa a transição para um estado perfeito e definitivo. A disposição do espírito de um defunto continua a ser a mesma após morte que foi durante a vida terrestre. A revelação do reino de Deus se dá diariamente nas almas capazes de recebê-la; e cada pensamento espiritual acelera o advento universal do reino de Deus sobre a face da terra."


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Meus amigos, no meio deste grande e solene silêncio, deste silêncio dinâmico da presença de Deus, em que nos achamos, vamos submergir profundamente, neste misterioso mundo da verdade; até que ele nos penetre totalmente e transforme todas as nossas atividades pelo poder da verdade libertadora.

''Conhecereis a verdade'', disse o grande Mestre da humanidade, e ''a verdade vos libertará.''

Neste momento solene e sagrado, desça sobre mim e sobre cada um de nós, Senhor, a tua grande paz e permaneça conosco eternamente. E, se algum de nós ou dos nossos aqui presentes ou ausentes, ainda estiver sem paz, perturbado nas energias da sua alma, da sua mente ou do seu corpo, invocamos a luz branca do Cristo eterno e universal; para que rearmonize todas as nossas desarmonias espirituais, mentais e corporais. E dê a cada um de nós perfeita santidade, sapiência e sanidade, para que através de cada um de nós seja proclamado o reino de Deus sobre a face da terra.



PARTE 2



PARA MEDITAR


Assim seja Vamos dizer umas poucas palavras sobre um assunto de imensa importância em nossos dias: a meditação. Meus amigos! A palavra não é exata, mas ela é a mais usada e a mais conhecida. Devia ser antes contemplação. Quando o homem entra em meditação, ou melhor, em contemplação, ultrapassa ele a zona da sua consciência habitual, do seu ego consciente, e entra na zona ignota do seu eu supraconsciente, pleniconsciente. Para além de toda concentração mental e para além mesmo da meditação espiritual começa este mundo misterioso da contemplação intuitiva que os orientais chamam samadi e que nós costumamos chamar êxtase. Esta palavra êxtase ? palavra grega composta de ek- stasis, quer dizer literalmente, posição fora de si, isto é, uma atitude fora do ego habitual consciente. Uma invasão do mundo espiritual supraconsciente. Quando o homem medita deve ao menos no princípio, impor silêncio, tanto às sensações do corpo, como aos pensamentos do intelecto. Meditação não é leitura espiritual, não é estudo, não é análise de textos sacros. Meditar é focalizar a consciência espiritual em Deus. Colocar a alma bem dentro da luz divina e deixá-la imóvel, no meio dessa irradiação, como uma planta colocada em plena luz solar, com as mãozinhas das verdes folhas erguidas ao céu, em silenciosa prece ao astro benéfico que tudo opera na planta: vida, beleza, alegria,contanto que esta seja devidamente receptiva e heliantrópica. De fato, a alma do orante é antes objeto que sujeito, pois não é ela propriamente que faz aquilo que está acontecendo. É Deus que o faz nela, por ela, para ela. Basta que a alma do orante seja receptiva para as maravilhas divinas que nela são produzidas, durante essa intensa e silenciosa diatermia celeste, essa gloriosa passividade dinâmica.



LUGAR E TEMPO:



É necessário que o homem escolha, para meditação,ou contemplação, tempo e lugar apropriados. Seria erro funesto, por exemplo, querer dedicar a essa ocupação importantíssima a pior meia-hora das 24 horas do dia; talvez o período depois dos trabalhos profissionais, quando corpo, a mente e a alma estão derreados de fadiga e suspiram por um pouco de repouso. É necessário reservar para comunhão com Deus a melhor meia-hora ou mesmo uma hora do dia, quando todas as faculdades do homem estejam em perfeita calma e equilíbrio; porquanto a meditação bem feita não é algum doce e indolente devaneio, semi-sonâmbulo, mas é, pelo menos no princípio, um trabalho pesado, que reclama todas as energias do nosso ser. Nem convém meditar num lugar onde se possa ser facilmente perturbado. Quem não encontrar em casa um cantinho sossegado e não-devassável, fará bem em procurá-lo fora de casa, em plena natureza, ou então na doce penumbra de alguma igreja aberta, onde à sombra duma coluna, encontrará facilmente o ambiente desejado e seguro contra incursões indébitas. Há nas 24 horas do dia, dois períodos especialmente favoráveis à meditação: um de manhã e outro à noite.A treva ou a semiluz são, geralmente propícias à meditação. Luz ligeiramente azulada ou esverdeada é preferível a outras tonalidades.



ATITUDE CORPÓREA:



Devido à íntima correlação que vigora entre corpo e alma, é de suma conveniência que, enquanto a alma se entrega à meditação, o corpo mantenha uma atitude compatível com essa atividade espiritual. A melhor posição do corpo, durante a meditação, é a de sentado naturalmente, se possível em cadeira de assento duro e encosto vertical. A espinha dorsal assume atitude ereta, normal; as pernas, não cruzadas, ficam em posição espontânea, formando ângulo reto na junção com o corpo e nos joelhos; as mãos, de palmas para cima, pousam naturalmente no regaço ou sobre as coxas, junto ao corpo; os olhos conservam-se ligeiramente fechados - tudo isto, que aos inexperientes talvez pareça arbitrário ou artificial, é perfeitamente natural e espontâneo para quem, de fato, se acha imerso em profunda comunhão com Deus.

domingo, 17 de agosto de 2008

TUDO EM QUE ACREDITAMOS NOS APRISIONA




Por Robert Anton Wilson

Deve ser óbvio para todos os leitores inteligentes (mas curiosamente não é óbvio para todos) que o meu ponto de viste neste livro é de agnosticismo. A palavra "agnóstico" aparece explicitamente no "Prólogo” e a atitude agnóstica é repetidamente mencionada no texto, mas muitas pessoas ainda pensam que eu “acredito” em algumas das metáforas e modelos aqui mencionados. Portanto quero esclarecer , como nunca antes o fiz, que:

Eu não acredito em nada.

Essa afirmação foi feita explicitamente por John Gribbin, editor de física da revista New Scientist, em um debate da BBC com Malcolm Muggeridge, e provocou incredulidade por parte da maioria dos espectadores. Parece ser uma ressaca da era medieval católica que leva a maioria das pessoas, até aquelas considerada,, "educadas”, a pensar que todos devem “acreditar" em alguma coisa ou outra: que se uma pessoa não é teísta, deve então ser uma ateísta dogmática: e se, uma pessoa pensa que o capitalismo não é perfeito, ela deve acreditar fervorosamente no socialis­mo; e se uma pessoa não tem uma fé cega em x, ela alternativamente deve ter uma fé cega em y ou no reverso de x.

Minha opinião é de que a crença é a Morte da inteligência. A partir do momento que alguém acredita em algum tipo de doutrina ou assume a certeza, ele pára de pensar a respeito do aspecto da existência. Quanto maior é a certeza assumida, menos é deixado para se pensar a respeito de um determinado assunto, e uma pessoa que tivesse certeza sobre tudo não teria nenhuma necessidade de pensar a respeito de qual­quer coisa e poderia ser considerada clinicamente morta de acordo com as normas médicas atuais, pois a ausência de atividade cerebral é consi­derada o fim da vida.

Minha atitude é idêntica à do Dr. Gribbin e à da maioria dos físicos de hoje, visto que ela é conhecida como "A Interpretação de Copenhaguen", pois foi formulada em Copenhaguen pelo Dr. Niels Bohr e seus colabora­dores, entre 1926-1928. Algumas vezes, A Interpretação de Copenhaguen é chamada de "agnosticismo modelo" e reza que qualquer plano utilizado para organizar nossa experiência no mundo é um modelo do mundo e não deve ser confundido com o próprio mundo. Alfred Korzybski, o semanticista, procurou popularizar essa física externa por intermédio do slogan: "O mapa não é o território". Alan Watts, um talentoso exegeta da filosofia oriental, reformulou-o mais vividamente como: "O cardápio não é a refeição".

A crença no sentido tradicional, ou convicção, ou dogma, resulta na grandiosa ilusão: "Meu modelo presente" — ou plano, ou mapa, ou túnel-realidade — "contém todo o universo e não precisará mais ser revisto". Em termos de história da ciência e do conhecimento em geral, para mim, isso parece absurdo e arrogante e fico sempre surpreso pelo fato de tantas, pessoas conseguirem viver com essa atitude medieval.

O Gatilho Cósmico trata de um processo de alteração cerebral deliberadamente induzida, pelo qual eu mesmo passei durante os anos de 1962 a 1976. Esse processo é chamado de "iniciação" ou "busca da visão” em muitas sociedades tradicionais e pode facilmente ser considerado, em terminologia moderna, como uma variedade perigosa de autopsicoterapia. Eu não o recomendo para todos e acho que consegui um número maior de bons resultados do que de ruins, visto que passei por duas variedades de psicoterapia clássica antes de começar minhas próprias aventuras e, por possuir um bom conhecimento de filosofia científica, eu não estava inclinado a "acreditar" literalmente em nenhuma impressionante Revelação.

Em resumo, o que aprendi de mais importante em minhas experiências é que "realidade é sempre plural e mutável".

Como a maior parte de O Gatilho Cósmico é dedicada à explicação e à ilustração dessa afirmação, e como já tentei explicá-la em outros livros e ainda encontro pessoas que leram tudo o que escrevi acerca do assunto e continuam não entendendo o que quero dizer, tentarei novamente neste novo "Prefácio" explicá-la UMA VEZ MAIS e talvez de forma mais clara que antes.

"Realidade" é: (a) um substantivo e (b) singular. Pensando no idioma português (e nos conhecidos idiomas indo-europeus), essa palavra nos pragrama subliminarmente a conceituar "realidade" como uma entidade de um só bloco, por exemplo, um arranha-céu de Nova Iorque, onde cada parte é tão somente outro espaço dentro do mesmo edifício. Esse programa lingüístico é tão dominante que a maioria das pessoas não pode "pensar" além de seus limites e, quando alguém tenta oferecer uma nova perspectiva, logo imagina que esse alguém esteja falando bobagem.

Saber que “realidade é um substantivo, algo sólido como um tijolo ou um taco de beisebol, deriva do fato evolutivo de que o nosso sistema normalmente organiza a dança energética dentro desses sólidos, provavelmente como avisos instantâneos de sobrevivência biológica. Entretanto, esses sólidos voltam por se dissolver em danças energéticas — processos ou verbos —, quer quando o sistema nervoso entra em sinergia mediante certa drogas, quer quando transmutado por exercícios xamânicos ou de yoga, quer recebendo a ajuda de instrumentos científicos. Tanto no misticismo quanto na Física, há uma concordância geral de que os sólidos são construídos pelo nosso sistema nervoso e de que “realidades” (plural) são mais bem descritas como sistemas ou conjunto de funções energéticas.

Robert Anton Wilson


Isso no que se refere à “realidade”como substantivo. O fato de saber que realidade é singular, como um jarro hermeticamente fechado, não se harmoniza com as descobertas científicas que, durante este século sugerem que “realidade” pode ser melhor considerada como fluindo e vagueando como um rio, ou interagindo como uma dança, ou evoluindo como a própria vida.

A maioria dos filósofos sabia, pelo menos desde os anos 500 a.C., que o mundo percebido não é “o mundo real”, mas uma construção criada por nós mesmos — nossa própria e particular obra de arte. A ciência moderna teve início quando Galileu demonstrou que a cor não é “parte integrante” dos objetos, mas é a “interação de nossos sentidos” com os objetos. Apesar desse conhecimento filosófico e científico da relatividade neurológica, mais claramente demonstrada pelos instrumentos cada vez mais modernos, devido à linguagem nós ainda pensamos que, atrás do universo que flui, vagueia, interage e evolui criado pela percepção, encontra-se uma sólida "realidade" forte c nitidamente delineada quanto uma barra de ferro.

A física quântica minou aquela "realidade" de barra de ferro, mos­trando que faz mais sentido falar das interações que realmente experimentamos de forma exclusivamente cientifica (nossas atividades no laboratório); e a psicologia da percepção minou a "realidade" platônica, mostrando que, se existisse, levaria a contradições desanimadoras se ten­tássemos explicar como realmente percebemos que um hipopótamo não é uma orquestra sinfônica.

As únicas "realidades" (plural) que realmente experimentamos e sobre as quais podemos falar significativamente são realidades percebidas, realidades experimentadas, realidades existenciais — realidades que nos envolvem como editores — e, para o observador, todas elas são relativas, flutuando, evoluindo, com capacidade de serem ampliadas e enriquecidas, movendo-se de uma baixa resolução para uma alta fidelidade e não se conformando juntas como peças de um quebra-cabeça em uma única Realidade, aquela com R maiúsculo. Ao contrário, projetam iluminação, uma sobre a outra, por contraste, como as pinturas em um grande museu ou os diferentes estilos sinfônicos de Haydn, Mozart, Beethoven e Mahler.
Alan Watts pode ter colocado isso da melhor forma: "O universo é um borrão gigante de Rorshach". Para isso, a ciência encontra um significado no século XVIII, outro no século XIX e um terceiro no século XX; cada artista encontra significados únicos em outros níveis de abstração; e cada homem e cada mulher encontram significados diferentes em momentos diferentes do dia, dependendo dos ambientes, interno e externo, em que se encontram.

Este livro trata do que eu denominei de alteração cerebral induzida e que o Dr. John Lilly intitula mais especificamente de "autoprogramação do biocomputador humano". Como psicólogo e romancista, basicamente me empenhei em saber quão rapidamente seria possível reorganizar a função cerebral de um primata normal domesticado e de inteligência média — o único sobre o qual eu poderia eticamente efetuar essa pesquisa arriscada — eu mesmo.

Tal como a maioria das pessoas que historicamente tentaram essa "autoprogramação", logo me encontrei em águas revoltas. Tornou-se seguramente óbvio que meus modelos e metáforas anteriores não poderiam ser responsabilizados pelo que eu estava experimentando. Portanto, tive de criar novos modelos e metáforas à medida que seguia adiante. Como eu estava lidando com assuntos fora de realidades consensuais, algumas de minhas metáforas são um tanto extraordinárias. Isso não me incomoda, pois sou tanto artista quanto psicólogo e também não me incomodo quando as pessoas interpretam essas metáforas ao pé da letra.

Peço-lhes, gentis leitores, que memorizem a citação de Aleister Crowley no início da "Parte I” e tornem a repeti-la caso, em algum momento, vocês comecem a pensar que estou lhes trazendo as mais recentes revelações teológicas da Central Cósmica.

O que minhas experiências demonstraram — o que tais experiências ao longo da história demonstraram — é simplesmente que nossos modelos de “realidade” são muito pequenos e ordenados, enquanto o universo da experiência é enorme e desordenado, e nenhum modelo pode jamais incluir toda a grande desordem percebida pela consciência não censurada.

(Continua... )

Do livro de Robert Anton Wilson, "O Gatilho Cósmico"

Mais sobre o autor em:



quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O saber noturno


Há sujeitos que levam no peito um coração fatigado pela infelicidade, pela dor mais suprema, mas que ainda assim pulsa vigorosamente, pronto para o rejuvenescimento e para a voluptuosa alegria. Esses corpos que buscam simultaneamente os extremos da dor e da alegria engendram um tipo de conhecimento, que podemos nomear de SABER NOTURNO.
O saber noturno é característico de um corpo que sofre porque quer se expandir, tal como o corpo de uma parturiente. Trata-se de um conhecimento que tem a tarefa de parir uma nova vida, livre, intensa, repleta de possibilidades e de venturas. A criação dessas novas possibilidades de existência, desembaraçada dos limites e dos constrangimentos da atualidade, é a grande missão dos poetas, dos pensadores-artistas que desejam livrar o devir das amarras da continuidade, do passado, dos ideais metafísicos e das superstições teleológicas que contaminam e ensombrecem o futuro.
O saber noturno é o corpo da parturiente, as sábias e firmes mãos da parteira, mas é também a criança que cria o seu mundo, seus valores e usufrui do tempo de acordo com os desejos. O "momento da criança" ilustra o tempo da criação, a capacidade lúdica e artística do homem livre do fardo da história, e, portanto, plenamente ligado ao presente.
" O lúdico artista – explica o filósofo Miguel Barrenechea – não olha para trás, nada o prende ao que foi, é 'inocência e esquecimento'. O criador está alheio ao dever e à culpa; nenhum ressentimento, nenhuma vingança o ocupa. Ele vive plenamente o aqui e agora, sem dívidas sobre o que já foi nem preocupações com o que virá."
Com a mesma intensidade e curiosidade da criança, os pensadores-artistas brincam "inocentemente" no lado escuro e terrível da vida. Pois se trata de um corpo que quer se expandir, isto é, que não se limita ao já conhecido, ao já pensado e criado à luz do dia que tudo revela e desencanta. Como afirma Nietzsche, todo " crescer e devir no reino da arte tem que acontecer numa noite profunda."


Os pensadores-artistas sabem que todo ser vivo precisa não só de luz para ver, como também da escuridão para sonhar.


(Fragmento de tese escrita por Tony Hara)



quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Conhece-te a Ti Mesmo!



Texto de Albert Low, extraído do livro
"A Prática do Zen e o Conhecimento de si mesmo"


O Dogen diz o seguinte: "Praticar o Zen é conhecer a si mesmo. Conhecer a si mesmo é esquecer de si mesmo."

O que isso significa, "Praticar o Zen é conhecera si mesmo"?

Como regra geral, não conhecemos a nós mesmos; ao contrário, conhecemos coisas, pensamentos, emoções, sentimentos, mas não a nós mesmos. Quando Gurdjieff diz que não nos lembramos de nós mesmos, ele está dizendo exatamente o mesmo que Dogen.

Mas o fato de estarmos cheios demais de nós mesmos não constitui problema?

Sim, mas esquecemos o que é essencial. Dogen diz que conhecer a si mesmo é esquecer de si mesmo, mas, antes que possamos esquecer de nós mesmos, devemos conhecer a nós mesmos. Constantemente, usamos a palavra "eu". Todas as nossas conversas, reais e imaginárias, giram em tomo do "eu". Dizemos "eu" gosto e "eu" não gosto; "eu" quero e "eu" não quero. Confundimos o "eu" com o si mesmo; embora eles não possam ser separados, não são a mesma coisa. Uma monja Zen dizia: "Eu não posso arrancar a erva daninha, porque, se o fizer, estarei arrancando a flor." Um mestre Zen queria dizer o mesmo quando falava: "O ladrão meu filho!" É como um espelho e seus reflexos: eles não são dois, mas não são o mesmo. "Eu" também é um reflexo com o qual ficamos muito fascinados, que evoca um drama constante e infindável de emoções, medos e fracassos, sucessos e alegrias. Surfamos pela vida na prancha do "eu", lutando para ficar na crista da onda, mas afundando pra sempre na angústia. "Eu" é sempre algo que vai acontecer no futuro, algo para esperar, pra atingir, para obter, para ganhar. Dai, vem o momentum da jornada.

A satisfação do "eu" é o nosso culto; para isso, curvamos nossa vontade e nosso desejo. O ego, como um rei morto, precisa ser alimentado, satisfeito a todo custo — de tal maneira que freqüentemente confundimos a satisfação do ego com a felicidade, embora ambas sejam tão diferentes quanto a areia e o arroz. A maior satisfação do ego freqüentemente anda de mãos dadas com uma profunda infelicidade. Basta pensar nas estrelas do rock, agarrando o microfone e se contorcendo numa confusão de luz e estupor enquanto aceitam a adulação de estranhos; ou nos executivos aflitos pisando como burros a roda da aclamação pública, exaustos por longas noitadas, quartos de hotel e aeroportos, esmagados pela carga do próprio sucesso. Entretanto, embora talvez mais raramente, a felicidade chega sem qualquer satisfação do ego. Monges, ermitãos e anacoretas às vezes encontram esse tipo de felicidade, mas também a encontram os homens e as mulheres que estão simplesmente satisfeitos com o que têm, sem considerar se é muito ou pouco.

A satisfação do ego é um claro reflexo do si mesmo, ou tão claro quanto a água lodosa da experiência o permitir. Estamos sempre procurando por ela, e, quando a encontramos, nós a tratamos com carinho, guardamos e procuramos perpetuá-la, até mesmo á custa da saúde, da sanidade e, ás vezes, da própria vida. Ela tem muitos degraus e gradações. Por exemplo, a sensação do si mesmo, a mais básica de todas as auto-reflexões, oferece a mais elementar satisfação do ego. Quando estamos incertos, indecisos, envergonhados, ou quando temos medo do palco, perdemos a sensação do si mesmo. As vezes dizemos, depois de um momento embaraçoso: "Eu estava completamente á deriva", "estava perdido", "estava fora de mim" e assim por diante. Se a incerteza é grande, as sensações de ansiedade, medo ou pânico podem inundar-nos. Então, desenvolvemos estratégias para dar conta da ansiedade, restaurando a sensação do si mesmo. Os homens esfregam o queixo, usando a barba como uma espécie de lixa. As mulheres põem a mão no cabelo. Tocamos o nariz, passamos a língua pelos lábios, cruzamos os braços ou pernas (ou ambos). Tudo para restaurar a sensação do si mesmo.

Tudo isso é inócuo. Porém, algumas pessoas magoam a si próprias e até mesmo se ferem para recuperar essa sensação perdida. Lembro-me de ter visto uma jovem caminhando por uma rua, segurando-se à mãe com uma das mãos. Seu outro braço subia e descia ao lado do corpo, castigando a coxa. Batia, batia, batia, o braço nunca parava, a não ser quando a rua ficou tão cheia que ele acabou sendo obstruído. Então, a garota olhou em volta como alguém que está afundando, em pânico, até que conseguiu forçar caminho entre a multidão e entrar numa área livre, onde o braço pôde continuar seu trabalho brutal.

Temos outra estratégia ainda mais sutil para ter a sensação do si mesmo. É pela tensão fisica. A maioria das pessoas é como uma catedral gótica de tensão: cada tensão apoia outras tensões, que por sua vez apoiam outras tensões. A pedra fundamental é o "eu" e, como um garotinho correndo colina abaixo para manter o equilíbrio, estamos todos correndo atrás dessa pedra fundamental que apoia o arco da nossa existência. Ás vezes, quando as pessoas meditam, elas abrem mão dessa pedra fundamental por um momento — e a estrutura toda move-se, precipita-se, escorrega. Esse movimento cria grande medo e incerteza, descendo pela nuca e exigindo maior tensão, ranger de dentes, cerrar de punhos, encolhimento de diafragma.

Além da estratégia da tensão, existe outra que depende de uma emoção habitual, assim como a ansiedade entorpecente, a vaga depressão, a raiva sufocante. Atiçamos o fogo da negatividade com lembranças: fracassos anteriores, conflitos passados, traições passadas e humilhações. Constantemente remexemos os carvões, procurando conhecer o si mesmo sob a luz e o calor de sua dor. A última coisa que as pessoas abandonam, diz Gurdjieff, é o seu sofrimento. Para muitas, o objetivo da vida — a última pedra fundamental — é libertar-se de um certo tipo de ansiedade, de um certo tipo de dor; mas, se elas tivessem de fazer isso, sua vida perderia o significado, e assim o círculo vicioso é mantido.

Mais profundo ainda é o monólogo, aquela discussão infindável com o Outro oculto no crepúsculo de nossa mente. Lisonjeando, explicando, ensinando, argüindo, a discussão é interminável. No centro de tudo isso está a esperança da entronização do "eu". Muitas conversas com amigos e inimigos são simplesmente continuações desse monólogo. Então, o Outro emerge das sombras e, por um momento, fica diante de nós. Depois de algum tempo, a conversa termina, a luz se apaga, mas o monólogo continua. Ele continua até mesmo durante o sono, quando se tece inextricavelmente com imagens nos sonhos. Planos, projetos e objetivos aproveitam a energia que de outro modo é dissipada pelo monólogo, mas, mesmo assim, os planos, os objetivos ainda fazem parte dessa novela da qual eu sou o diretor, o produtor, a estrela que atua e a audiência. Outros, amigos e inimigos, são o elenco de apoio e devem conhecer os seus papéis, falar o seu texto, entrar e sair conforme o papel que desempenham. Se eles esquecem sua fala, mudam-na, não atuam de acordo com a personagem que representam, dizemos que a vida está repleta de acidentes, injustiças, fracassos, e que os outros são injustos, irresponsáveis, insensíveis. Julgamos a nós mesmos e aos outros, repartimos a repreensão e o elogio, tudo de acordo com o roteiro do drama de nossa vida Shakespeare não disse que o mundo todo é um palco e que todos os homens e mulheres são meros atores?

Quando me dizem que devemos conhecer a nós mesmos, acredito que isso quer dizer conhecer a estrela da novela, o que a moldou, onde ela aprendeu os seus papéis ou como acabou dizendo esse texto. Acreditamos que conhecer significa analisar, encontrar a causa e o efeito, ver as sementes sendo plantadas e as colheitas sendo realizadas — sementes de solidão, raiva, crueldade, medo e ansiedade; colheitas de miséria, fracasso, desespero. Acompanhamos o florescimento das sementes como ervas daninhas e ficamos atentos ao sol e à chuva, às situações que as devem ter fertilizado e assim tentamos chegar a conhecer esse jardim no qual flores, ervas daninhas, capim e espinhos lutam numa simbiose que chamamos de personalidade.

Isso, porém, não é o que Dogen quer dizer quando fala em conhecermos o si mesmo, nem o que Gurdjieff quer dizer com "lembramo-nos do si mesmo". Conhecer o si mesmo requer que demos o primeiro passo e vejamos o drama, qualquer que seja o seu conteúdo, como drama, e saber que ele é uma reflexão. Poucos são capazes de dar esse primeiro passo necessário, porque estamos muito convencidos de que o drama é real, de que o contra-regra e o elenco, as cenas e o diálogo são reais, de que têm uma vida independente daquela que lhes demos. Hoje em dia, essa convicção da realidade do drama chegou a um ponto em que todos somos vitimas: mulheres são vitimas trabalhadores são vitimas, pacientes são vitimas, cidadãos são vitimas. Reclamamos, protestamos, entramos em litígio, tudo na sólida convicção de que "eles" é que são a causa, de que "isso" é o problema.

Damos tudo isso como totalmente certo.

Quando eu era jovem, a indústria de filmes ainda era incipiente. Foi numa época em que o western era popular. Lembro-me de uma vez em que estava assistindo a um filme a respeito de um xerife que usava um chapéu branco, montava num cavalo branco, com um revólver num coldre branco, e cavalgava em direção à cidade para uma luta final com um fora-da-lei que, naturalmente, tinha um chapéu preto, um cavalo preto, um bigode preto e um revólver preto. O xerife cavalgava ereto, alto na sela, em direção à cidade para enfrentar o homem mau que estava de pé no meio da estrada, ligeiramente curvado, esperando que ele descesse do cavalo para começar o duelo.

O xerife desceu lentamente a estrada ladeada de saloons e lojas. A estrada estava vazia, exceto pelo solitário fora-da-lei, atrás do qual estendia-se, ~ longe, o vasto deserto pontuado de cactos e pedras. Além do deserto, surgiam, azuis e roxas, as montanhas com os picos cobertos de neve.

A tensão aumentava à medida que o homem da lei se aproximava do duelo. Ele puxou as rédeas do cavalo, desceu e, com as costas descuidadamente voltadas para o fora-da-lei, prendeu o cavalo a um poste ali peito. Sem nenhuma pressa, ele se voltou e analisou a cena. A tensão alcançou o clímax. Quem faria o primeiro movimento? Tudo parecia congelado na eternidade por alguns momentos. Então as montanhas se moveram! Não muito, mas elas se moveram! Elas não eram reais; eram simplesmente pintadas numa tela grande. Num momento, a coisa toda — caubóis, deserto, cavalos, saloons — virou uma farsa. Já não se podia levar mais nada a sério. Não importava quem ia atirar em quem. Aquilo não era mais real, mas apenas uma ilusão que eu estava tomando real para a minha própria diversão.

Para conhecer o si mesmo, temos de fazer as montanhas se moverem. Tudo de que precisamos é de uma revelação — não muito, apenas um lampejo, um momento no qual não ocorre nenhuma censura.

Esses momentos apresentam-se o tempo todo, e o tempo todo fechamo-nos para eles. Fechamo-nos contra uma perda do si mesmo, reagimos, agarramo-nos, adotamos uma estratégia ou outra. A resistência é quase instintiva. É por isso que todas as religiões dizem-nos para observar, para estarmos alertas e atentos, para estarmos presentes de modo que, quando esses momentos surgirem, possamos apenas deixa-los acontecer sem a resistência. De fato, não podemos deixar de pensar se é a isso que Cristo estava se referindo com a sua parábola das virgens sábias e das tolas. No fim da parábola, o noivo chega, e aquelas que estão prontas vão com ele para a festa de casamento; então, a porta se fecha. "Depois, as virgens tolas também chegam dizendo: ‘Senhor, senhor, abri a porta para nós.’ Mas ele retruca: ‘Fiquem atentas, porque vocês não sabem nem o dia nem a hora.’"

Esse momento de não-reflexão desvela o despertar antes do despertar, o momento em que bodhichitta aparece. Um fluxo de reflexão que desperta, no contrafluxo de todo conflito num momento de saber sem conteúdo, sem nenhuma consciência do saber. Não se pode nem mesmo falar de "um momento de conhecimento". O conhecimento brilha. Dogen chama esse conhecimento "conhecer o si mesmo". Bodhidharma chama-o de não conhecer em resposta à pergunta que lhe foi feita pelo imperador Wu: "Você não é um homem santo?"

A contraparte do puro conhecimento pode ser chamada de paz ou até mesmo de bem-aventurança, não uma felicidade ou bem-aventurança que a pessoa sente, mas que conhece; conhecer é bem-aventurança Ela pode muito bem ser o que o Novo Testamento chama de "uma paz que vai além de todo entendimento". Contudo, para aqueles que estão acostumados a conhecer o si mesmo através de uma cortina de sofrimento e conflito, essa paz boceja como uma ameaça, um abismo, uma fonte de medo. Apenas aqueles que podem estar presentes vêem-na como uma oportunidade para uma reviravolta, um pravritti, como é conhecido em sânscrito. Com essa reviravolta, a luxúria após a reflexão, a tentativa de alcançar o absoluto na experiência transitória, deixa de exercer controle. A pessoa já não vive mais as coisas como objetivas e independentes, mas como reflexões sem conhecimento. No contrafluxo de toda a necessidade de concentrar a atenção, todo conflito toma-se uma dança, toda oposição se funde como "eu", e os Outros são conhecidos como duas facetas de uma realidade. A preparação para essa reviravolta geralmente leva muito tempo; é nisso que consiste a prática.

Alguém pode muito bem objetar, dizendo que a prática também consiste em enfocar a atenção, concentrar-se. Sim, às vezes, a prática requer mesmo uma intensa concentração que exige um grande esforço, até mesmo físico. Isso permite que a mente se retire de todos os focos triviais que a obstruem. Se concentramos a mente intensamente, podemos romper com os milhares de fios que nos amarram, como os fios dos liliputianos amarraram Gulliver. Mas então devemos ir além desse esforço. Embora a concentração e a força da mente ocupem o seu lugar, a prática vai muito além disso na contemplação. Contemplação significa "ser uno com", estar completamente aberto. Nisso reside a grande diferença entre praticar com um koan e praticar com um mantra. Para praticar com um koan, deve-se manter a mente aberta. Os mestres Zen chamavam isso de sensação de dúvida. O mantra, porém, tem o efeito de fechar a mente, de fornecer-lhe um foco permanente. A sensação de dúvida, também chamada sensação de anseio ou sensação de desejo, permite que a mente fique cada vez mais excitada sem apoiar-se em nada, até o ponto em que a pura consciência sem conteúdo, reflexão ou desejo pode dar um salto à frente numa explosão de luz, numa explosão de puro ser. A reviravolta deve ser súbita; é como se a pessoa desse um pulo de alguma coisa para nada, ou melhor, de alguma coisa para tudo.








segunda-feira, 4 de agosto de 2008

David Lynch e a meditação





David Lynch fala sobre meditação em São Paulo

Palestra e Lançamento de Livro
Quinta-feira, 7 de agosto às 15h
Tema: EM ÁGUAS PROFUNDAS - Criatividade e meditação
Palestrantes: David Lynch
Local: Livraria Cultura Conjunto Nacional - Av. Paulista, 2073 - São Paulo/SP


"Meditar é como mergulhar num cofre cheio. Cada vez que vai lá, consegue pegar algumas moedas. Se for todos os dias, pega mais e mais moedas." "Apenas faça, depois siga com sua vida e veja tudo melhorar."





"O lançamento do livro não é sua preocupação maior. O foco é o programa de educação baseada na consciência", diz Kleber Tani.


http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/eventos/resenha.asp?nevento=3357&tipoEvento=palestra&sid=8918901971083606869785225&k5=28858B99&uid=



Neste livro, uma mistura de autobiografia, história do cinema, ensaio espiritual e manual de meditação, o célebre diretor David Lynch conta como a prática da Meditação Transcendental mudou a sua vida, além de revelar como ela o ajuda a concentrar energias, estimulando sua criatividade e consciência. Um relato de experiências entremeado de histórias jamais reveladas sobre a produção de suas obras-primas cinematográficas. Em Águas Profundas é uma leitura imperdível, não só para fãs do cinema de David Lynch, mas também para todos que desejam melhorar a sua própria condição mental, através do desenvolvimento da criatividade e da capacidade de concentração.



http://www.travessa.com.br/EM_AGUAS_PROFUNDAS_CRIATIVIDADE_E_MEDITACAO/artigo/dce11297-2f66-4d8e-abcf-a35b5c368776

Mais sobre David Lynch e a meditação

(matéria publicada no IOL Portugal Diário em 17-11-2007)

O realizador norte-americano David Lynch esteve este sábado no European Film Festival, o último dia da mostra portuguesa, para dar uma Masterclass aberta ao público.
Mas Lynch não se deslocou ao nosso país apenas para falar de cinema, o tema principal da «aula» que deu no Centro de Congressos do Estoril e da breve conversa que teve antes com os jornalistas foi a meditação transcendental.
David Lynch, contou o próprio, anda na estrada há dois meses a falar de meditação transcendental, disciplina que abraçou há mais de 30 anos. Neste espaço de tempo, Portugal foi o 15º país e o Estoril a 26ª localidade que visitou e onde defendeu publicamente que a meditação transcendental pode trazer a paz ao mundo.
«A meditação ajuda a libertar, a ser feliz por dentro», disse o cineasta. «Procura o reino dos céus que tens dentro de ti e o resto virá por acréscimo», continuou. «Com a meditação as coisas negativas - a raiva, a depressão, a tristeza - desaparecem», garantiu o realizador durante a Masterclass.
Questionado sobre o impacto que esta disciplina teve na sua vida pessoal, em particular como artista, David Lynch comentou que antes de começar era uma pessoa afectada pela depressão e pela raiva.
«Com a meditação consegui ultrapassar emoções negativas como o medo e a ira, libertei a minha consciência e a criatividade começou a fluir», descreveu.
«O cinema não é só uma coisa intelectual, é muito emocional e tem também a ver com a intuição. É com a intuição que conseguimos saber se algo está certo ou errado. E se temos a mente limpa de negatividade, temos melhor acesso à intuição», disse.
Em 2005, o cineasta criou a David Lynch Foundation For Consciousness-Based Education and Peace (Fundação David Lynch para a Educação e Paz Baseadas na Consciencialização), que visa financiar pesquisas sobre os efeitos positivos da meditação transcendental.
«Tenho observado uma grande transformação nas escolas onde a meditação está a ser introduzida. Os níveis de violência baixaram e as crianças começam a aprender melhor e a desenvolver o seu potencial», referiu o realizador.
Recentemente Lynch encontrou-se com o presidente de Israel Shimon Peres a quem disse que colocar cerca de duas centenas de mestres em meditação em Israel seria o suficiente para acabar com o conflito no Médio Oriente.
«Podem dizer que sou louco, mas ao menos tentem e vejam o que pode acontecer. Em Portugal bastariam 350 professores para toda a população», disse na Masterclass.




O cinema de Lynch

Na «aula» e na conversa com os jornalistas era impossível fugir ao tema pelo qual ficou mais conhecido em todo o mundo, o cinema.
Mas como cria afinal David Lynch filmes que muitos (público e crítica) consideram «incompreensíveis»?
O realizador contou a história do seu último filme, «Inland Empire».
«Ia escrevendo e filmando. Certo dia tive uma ideia e escrevi-a. Era uma cena que nada tinha a ver com nada, peguei na câmara e fui para a rua filmá-la. Passados uns dias tive outra ideia, que nada tinha que ver com a primeira. Voltei a ir para a rua filmá-la. Mais tarde tive outra ideia, em nada relacionada com as duas primeiras. Voltei a fazer o mesmo», revelou.
«Depois comecei a criar cenas que estivessem relacionadas com as três primeiras. E aí já comecei a rodar o filme de maneira mais tradicional», acrescentou.
«As ideias surgem-me sempre fragmentadas, só mais tarde é que as reúno num só argumento», concluiu.
Quanto à maneira como lida com a incompreensão dos seus trabalhos, a resposta é simples: «cada um tira a sua própria conclusão dos meus filmes, e todas as conclusões são válidas».
Aos jovens cineastas deixou um conselho: «Sejam verdadeiros convosco próprios, mantenham-se fiéis às vossas ideias, não aceitem uma má ideia, mas nunca recusem uma boa», afirmou o realizador perante uma audiência de mais de 600 pessoas.

sábado, 2 de agosto de 2008

Fascismo avança sobre a Internet






O projeto sobre crimes na internet.


Uma ameaça aos direitos civis


"Quem destravar o celular (que se encaixa na definição do projeto de "dispositivo de comunicação") para utilizá-lo por outra operadora estará sujeito a pena de um a três anos de prisão. A mesma penalidade sofrerá quem, fazendo uso do direito de acesso a conteúdos em domínio público, destravar um CD ou DVD", escrevem Oona Castro, integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP e Sérgio Amadeu da Silveira, professor do mestrado da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 02-08-2008. Segundo os autores, '"ao legislar sobre os crimes de internet, nossos senadores perderam a oportunidade de enfatizar o interesse público. Poderiam ter proibido o cruzamento de bancos de dados e a troca de informações privadas de usuários por empresas (como fez a União Européia) ou impedido a constituição de travas que bloqueiam o acesso legal a conteúdos".

Eis o artigo.

Na madrugada de 9 de julho, o Senado aprovou o substitutivo do senador Eduardo Azeredo ao projeto de lei 89/03, que tipifica os crimes digitais. Preocupado em punir atividades ilegais na internet, o projeto possui artigos dúbios e se mostrou incapaz de dar soluções técnicas que impeçam o abuso na sua aplicação, a invasão de privacidade e a violação de direitos civis.

Especialistas apresentaram várias críticas ao projeto, mas as soluções propostas não resolveram os problemas. Um deles é o fato de o projeto ser "over-inclusive", ou seja, cria-se um filtro muito mais rigoroso do que o necessário, criminalizando práticas legítimas. Outro problema são as definições de conceitos -algumas ambíguas, outras amplas demais e outras simplesmente inexistentes -, dando espaço para aplicações arbitrárias da lei, mesmo que essa não seja a intenção do legislador.

Em alguns casos, dá-se a combinação desses dois problemas. O artigo 2º, por exemplo, ao alterar o Código Penal, transforma em crime todo acesso não autorizado a redes de computadores, sistemas informatizados e dispositivos de comunicação protegidos por expressa restrição de acesso, seja a restrição legal ou não.

Dessa forma, quem destravar o celular (que se encaixa na definição do projeto de "dispositivo de comunicação") para utilizá-lo por outra operadora estará sujeito a pena de um a três anos de prisão. A mesma penalidade sofrerá quem, fazendo uso do direito de acesso a conteúdos em domínio público, destravar um CD ou DVD.

Empresas poderão limitar acessos permitidos pela Lei de Direitos Autorais ou pelo Código de Defesa do Consumidor, transformando travas tecnológicas em instrumentos acima da legislação. Trata-se da criminalização de ações triviais dos usuários.

Já o artigo 22 cria para os provedores de acesso à internet a obrigação de repassar sigilosamente para as autoridades denúncias que tenham recebido que contenham indícios da prática de crime. Obriga também o registro e o arquivamento de todos os acessos dos usuários por três anos.

Iniciativas de inclusão digital, receosas por serem responsabilizadas por crimes, podem passar a restringir o acesso de usuários ou até banir redes sem fio.

Mesmo condicionando o fornecimento das informações ao poder público a decisão judicial, o projeto ignora a precariedade da proteção aos dados e o fato de o Brasil ter baixa tradição de respeito à privacidade, com estimados 400 mil grampos telefônicos e venda de dados sigilosos da Receita Federal por camelôs.

Sem conseguir impedir que verdadeiros criminosos se furtem aos controles propostos com medidas simples, como servidores no exterior, o projeto abre a possibilidade de vazamentos de dados de usuários comuns.

O substitutivo atende fundamentalmente a interesses de bancos que têm sofrido prejuízos com fraudes pela internet e a reivindicações da indústria de direito autoral dos Estados Unidos, que exige a criminalização da quebra de travas tecnológicas.

Publicamente, a justificativa mais usada pelos defensores do projeto foi o combate à pedofilia - de fato, um problema seriíssimo. Porém, na mesma madrugada em que o PLC 89 foi votado, os senadores aprovaram outro projeto, proposto pela CPI da Pedofilia, com apoio de entidades da sociedade civil, que trata dessa questão.

Ao legislar sobre os crimes de internet, nossos senadores perderam a oportunidade de enfatizar o interesse público. Poderiam ter proibido o cruzamento de bancos de dados e a troca de informações privadas de usuários por empresas (como fez a União Européia) ou impedido a constituição de travas que bloqueiam o acesso legal a conteúdos. Na contramão, desencorajam políticas desejáveis e legitimam a violação da privacidade e o cerceamento de direitos.

Com o retorno do projeto à Câmara dos Deputados, nossos representantes terão a oportunidade de rejeitá-lo integralmente ou, ao menos, suprimir os artigos que atacam frontalmente os direitos dos cidadãos.






sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O Buda numa tigela


Cada tigela que lavo, cada poema que escrevo, cada vez que convido um sino a tocar é um milagre, e cada um tem exatamente o mesmo valor. Certo dia, quando eu lavava uma tigela, senti que meus movimentos eram tão sagrados e respeitosos como se estivesse banhando um Buda recém-nascido. Se esse Buda recém-nascido lesse essas palavras, certamente ficaria feliz por mim e nem um pouco insultado por ter sido comparado com uma tigela.

Cada pensamento, cada ação debaixo da luz da consciência torna-se sagrada. Nessa luz não existem fronteiras entre o sagrado e o profano. Devo confessar que levo um pouco mais de tempo para lavar louça, mas vivo plenamente cada momento e sinto-me feliz. Lavar a louça é ao mesmo tempo um meio e um fim – ou seja, não apenas lavamos a louça para termos pratos limpos, como também lavamos a louça apenas para lavar louça, para viver plenamente cada momento enquanto a lavamos.


Thich Nhat Hanh, O Sol meu coração, da atenção à contemplação intuitiva, Editora Paulus, São Paulo, 1995


Foto: chapéu e tijela dos monásticos de Plum Village ©Plum Village sites

Extraído de: http://paraserzen.blogspirit.com/

A cultura do medo: quando o moralismo substitui a política


O 'j'acuse' do filósofo Alain Badiou

(entrevista com Alain Badiou)


Pequenos livros suscitam por vezes grandes clamores. Isso sucedeu na França com um panfleto intitulado Sarkozy: de que coisa é o nome? (Cronopio, 130 pp,), cujas densas páginas contêm uma crítica sem concessões sobre o sarkozysmo, mas também uma reflexão adstringente sobre a crise da democracia e sobre as possíveis formas do antagonismo político hoje. O autor é Alain Badiou, filósofo muito conhecido na França, professor da École Normale Supérieure de Paris, cujos livros permanecem em geral confinados na faixa restrita dos adeptos ao trabalho. Desta vez, no entanto, cúmplice da conjuntura política, suas teses radicais conheceram um vasto sucesso e suscitaram inumeráveis discussões, demonstrando que o binômio filosofia e política ainda pode ser produtivo. “A filosofia jamais me impediu de ser um militante, e até por diversas vezes denunciei a fuga dos intelectuais da vida política”, explica o estudioso autor de numerosos ensaios. Segundo Badiou: “Naturalmente, os filósofos não criam os conflitos sociais ou as revoltas políticas, mas com o seu trabalho específico contribuem para relacionar situações particulares com reflexões mais gerais sobre o homem, a liberdade, a igualdade, as tradições políticas, a diversidade das culturas. Neste sentido, eu me considero um intelectual que intervém politicamente”. A reportagem e a entrevista é do jornal La Repubblica, 28-07-2008.

Eis a entrevista.

Trata-se de interpretar o mundo para fornecer instrumentos ao corpo social?

O filósofo contribui para a leitura do mundo, mas na prática ajuda a orientar as batalhas particulares por processos mais gerais. O exemplo clássico é o de Marx, cuja cultura era filosófica. De um lado, ele mantinha as revoltas dos operários parisienses, do outro elaborava uma visão do desenvolvimento da história, em cujo interior integrava estas batalhas particulares.

Alain Badiou


Para Sartre as palavras são armas. Está de acordo com isso?

Certamente. Em política, a questão das palavras e de como se nomeiam as coisas é sempre um problema essencial. As palavras sempre fazem parte da política, também quando seu uso parece perfeitamente inocente. Há diversos anos, por exemplo, ao invés de falarmos de capitalismo, falamos de economia de mercado. Parece uma coisa de somenos, mas assim se remove a validade negativa que no passado era associada à palavra capitalismo. “Economia de mercado” é uma expressão menos forte, mais aceitável.

No livro sobre Sarkozy você denuncia que a moral se substitui à política. O que quer dizer?

É um processo em curso desde fins dos anos setenta. Pouco a pouco, renunciamos à elaboração de uma crítica política da história e da sociedade, deixando sempre mais espaço à crítica moral. O juízo fundado sobre as categorias do mal e do bem substituiu a análise política. Mas, esta é uma visão moralista e religiosa da realidade, não uma visão política. Além disso, a substituição da política pela moral, em fim de contas, está sempre a serviço das relações de força existentes, dado que, além do juízo moral, não se põe nada em discussão. Por isso, a substituição generalizada da política pela política consolidou o capitalismo global hoje dominante.

Colocar a política no centro da reflexão intelectual significa para você combater o “Petainismo transcendental” da França. O que entende com esta expressão?

A eleição de Sarkozy é o símbolo mais evidente de uma situação que ameaça perigosamente a tradição crítica e progressista da França. Tal ameaça é o resultado de uma tendência de fundo que, com a eleição de Sarkozy, ultrapassou um limiar simbólico. Não digo que Sarkozy seja como Pétain, mas somente que seu sucesso eleitoral representa a vitória de uma corrente reacionária, presente há muito tempo na França. O nosso país é, de fato, a nação dos direitos do homem e da revolução, mas também o país de uma forma de reação, cujos traços eram particularmente visíveis nos anos de Pétain. Traços que hoje retornam, embora adaptados ao contexto contemporâneo”.

Quais seriam?

Acima de tudo, a idéia de uma crise moral da qual convém recompor-se. Além disso, a designação de um grupo social perigoso que deve ser vigiado e controlado: para Pétain eram os judeus, para Sarkozy são os imigrantes que vivem nas periferias. Outro elemento importante é a vontade de erradicar a herança de um acontecimento passado, percebido como fortemente negativo: para Pétain era a experiência da frente popular, para Sarkozy a herança de 68. Por último, conta também a sensação de estar em atraso com respeito aos mais importantes modelos estrangeiros: para Pétain eram os grandes estados fascistas dos anos trinta, enquanto para Sarkozy o modelo a seguir é o do capitalismo anglo-saxão. Todos estes elementos se combinam com um sentimento de decadência nacional, ao qual se torna necessário reagir com força e sem incertezas.

Será o medo o combustível que alimenta estas formas de reação?

Sim. Há diversos anos, a maior parte da população francesa é dominada pelo medo. Medo do desemprego, da globalização, das tensões internacionais, da Europa, dos imigrantes, dos jovens, etc. São medos que nascem da incerteza ante o futuro. A França tem um grande passado, foi uma potência imperial e militar. Hoje, no entanto, tudo isso está para trás. Os franceses não sabem mais o que esperar do futuro, não sabem se poderão conservar os seus privilégios e se continuarão a ter um papel internacional. Sua subjetividade política, ao invés de ser criativa, é dominada pelo medo e pelo fechamento sobre si mesma. Conseqüentemente, as idéias políticas que vencem são idéias reacionárias.

Partindo da situação francesa, você sublinha os limites das democracias de sufrágio universal, recordando que não se pode julgar um princípio independentemente daquilo que produz. È mesmo assim?

A questão da democracia não pode ser reduzida à simples questão do sufrágio universal. Hitler subiu ao poder graças a eleições democráticas, pelo que a democracia é capaz do melhor, como do pior. Além do sufrágio universal, a democracia existe quando um povo é mobilizado em torno de uma política. O mundo atual não é mais aquele do século dezenove, as estruturas econômicas e sociais mudaram radicalmente. Com muita freqüência se tornam uma cobertura para um poder oligárquico, constituído por potentados econômicos e midiáticos que são os verdadeiros donos da sociedade. Diante desta situação, devemos saber inventar novas formas de participação democrática, num contexto em que o problema fundamental é o do controle dos meios de comunicação e, mais ainda, dos meios de produção. Se não conseguirmos resolver o problema, as democracias ocidentais continuarão a enfraquecer-se.



Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=15602