quinta-feira, 29 de maio de 2008

O poder da mente num mundo criado por ela


(Do livro "Tibete: MAGIA E MISTÉRIO", Alexandra David Neel - Editora Hemus)

Fonte:http://holosgaia.blogspot.com/2008/04/o-poder-da-mente-num-mundo-criado-por.html


O mestre ordena ao discípulo que se feche em "tsams" e medite, tomando o seu "Yidam" (sua deidade tutelar) como objeto de contemplação.

Mantendo absoluta reclusão, o noviço concentra seus pen­samentos no "Yidam", imaginando-o sob a forma que lhe é atribuída nos livros e imagens. A repetição de certas fórmulas místicas e o traçado de um "kyilkhor" fazem parte do exercício, cujo alvo é fazer o "Yidam" aparecer a seu adorador. Este é, pelo menos, o objetivo apontado pelo mestre ao principiante.

O discípulo interrompe a contemplação somente durante o tempo necessário para alimentar-se e durante um período muito reduzido em que se lhe permite dormir. Com freqüência o recluso não se deita inteiramente, apenas dormita em um daqueles 'gomti" descritos em um dos capítulos anteriores.

Meses e até mesmo anos podem passar desta maneira. Ocasionalmente o mestre indaga sobre o progresso adquirido pelo discípulo. Por fim chega o dia em que o noviço o informa que obteve o fruto do seu esforço: o "Yidam" apareceu-lhe. Como é de regra, no início a visão foi nebulosa e durou apenas um momento. O mestre declara que é um resultado encorajador, mas não ainda o alvo definitivo. É desejável, portanto, que o discípulo prolongue a satisfação de ter a bendita companhia do seu protetor.

O aprendiz de "naljorpa" não tem outra alternativa senão concordar e continua a esforçar-se. Longo período novamente se escoa. E então, o "Yidam" é por fim "fixado" - se é que se pode usar tal termo. Passa a habitar no "tsams khang' e o recluso pode vê-lo sempre presente no meio do "kyilkhor".

- Isto é muito bom - declara o mestre ao ser informado do fato - mas você deve tentar obter um favor ainda maior. Deve prosseguir na sua meditação até que seja capaz de tocar com a cabeça os pés do "Yidam", até que ele o abençoe e fale com você.

Embora os primeiros estágios tenham tomado muito tempo para ser atingidos, são considerados, não obstante, a parte mais fácil do processo. Os estágios que se seguem' são muito mais árduos de atravessar e somente uma minoria entre os noviços obtém o devido sucesso.

Os discípulos vitoriosos podem ver que o "Yidain" adquire vida. Distintamente sentem o toque dos seus pés quando, pros­ternados, descansam a cabeça sobre eles. Sentem o peso das mãos do "Yidam" quando este os abençoa. Podem ver então que os olhos se movem, descerram-se os lábios, o "Yidam" fala e. . . Ó prodígio! desloca-se do círculo do "kyilkhor" e caminha pelo "tsams khang".

Este é um momento perigoso. Quando coléricos, semideuses ou demônios são invocados desta maneira, jamais se lhes deve permitir que escapem do "kyilkhor" cujas mágicas paredes os mantêm prisioneiros. Se libertados fora do devido tempo, vin­gam-se da pessoa que os compeliu à espécie de prisão que é o círculo consagrado. Em se tratando do "Yidam", porém, em­bora a sua aparência possa ser amedrontadora e o seu poder algo a ser temido, deixa de ser perigoso porque o discípulo obteve o seu favor. Conseqüentemente, pode mover-se à vontade no eremitério. E melhor ainda do que isto, deve atravessar a soleira e permanecer a descoberto. Seguindo as instruções do mestre, o discípulo deve procurar saber se a deidade deseja acompanhá-lo quando ele sai do eremitério.

Esta tarefa é mais difícil do que as demais. Visível e tan­gível na obscuridade do eremitério perfumado pelo incenso, onde as influências psíquicas de uma prolongada concentração do pensamento estão em funcionamento, será a forma do "Yidam" capaz de subsistir em ambiente inteiramente diverso, sob a bri­lhante luz do sol, exposto a influências que, longe de mantê-la, poderão atuar como agentes de dissolução?

E uma nova eliminação tem lugar entre os discípulos. Muitos dos "Yidam" recusam-se a seguir os devotos para o exterior. Obstinadamente permanecem em algum canto escuro e algumas vezes vingam-se pelas desrespeitosas experiências a que estão sendo submetidos. Estranhos acidentes sobrevêm a alguns asce­tas, porém, outros obtêm sucesso no seu empreendimento e, aonde quer que vão, gozam da presença do seu venerável pro­tetor.

- Você atingiu o desejado alvo - diz então o "guru" ao seu exultante discípulo. - Nada mais tenho a ensinar-lhe. Ob­teve os favores de um protetor mais poderoso do que eu.

Alguns discípulos agradecem ao Lama e, orgulhosos da sua proeza, retomam ao seu mosteiro ou se estabelecem em um eremitério e passam o restante das suas vidas a entreter-se com o seu fantasma.

Outros porém, ao contrário, tremendo em agonia mental, prosternam-se aos pés do seu "guru" e confessam algum terrível

pecado. As dúvidas levantaram-se em suas mentes. Apesar dos mais vigorosos esforços não foram capazes de vencê-las. Diante dos seus próprios "Yidams", mesmo quando com eles falavam ou quando eles os tocavam, em suas mentes surgiu o pensamento de que contemplavam uma mera fantasmagoria que eles mesmos haviam criado.

O mestre mostra-se aflito com a confissão. O descrente deve voltar ao seu "tsams khang" e recomeçar todo o treina­mento a fim de se sobrepor à sua incredulidade, que revela enorme ingratidão para com o "Yidam" que o favoreceu.

Uma vez enfraquecida, raramente a fé volta a readquirir a firmeza original. Se o grande respeito que os orientais sentem pelos seus instrutores religiosos não os refreasse, esses incrédulos discípulos provàvelmente cederiam à tentação de desistir da vida religiosa, uma vez que o seu longo treinamento redundou em materialismo. Na sua quase total maioria, porém, mantêm-se firmes porque, se chegam a duvidar da realidade do seu "Yidam", jamais duvidam da sabedoria do seu mestre.

Depois de algum tempo, o discípulo repete a mesma con­fissão, desta vez ainda mais positiva do que na primeira. Já não se trata de uma questão: de "dúvida": está absolutamente "con­vencido" de que o "Yidam" foi produzido pela sua, mente e não tem outra existência a não ser a que lhe empresta.

- Era necessário que compreendesse exatamente isto - ­responde-lhe o mestre :-- que deuses, demônios e todo o uni­verso não passam de uma miragem que existe em nossa mente, "na mente surgem e na mente desaparecem".

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