quinta-feira, 27 de março de 2008

O Prajnaparamita





I - "SUTRA DO CORAÇÃO"


HOMENAGEM À SAGRADA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA!

Assim eu ouvi, uma vez em que o Abençoado permanecia em Rajagrirra, no Monte do Pico dos Abutres, junto com um grande grupo da Sangha de monges e uma grande Assembléia da Sangha de Bodhissátvas. Foi quando o Abençoado entrou no Samadhi que expressa o Dharma chamado "Iluminação Profunda" e enquanto isso o Nobre Avalokitésvara, o Mahasátva Bodissátva, ao praticar o Prajnaparamita Profundo viu desta maneira: viu que os cinco skandas eram vazios por natureza. Então pelo poder do Buddha o Venerável Shariputra perguntou o Nobre Avalokitésvara, o Mahasátva Bodhissátva:




"Como deve praticar um filho ou filha de família nobre que queira treinar o Prajnaparamita Profundo?"





Indagado desta maneira, o Nobre Avalokitésvara, o Mahassátva Bodhissátva, respondeu ao Venerável Shariputra:




"Ó Shariputra, um filho ou filha de família nobre que queira treinar o Prajnaparamita Profundo deve ver desta maneira: Forma é vazio, vazio também é forma. O vazio não é outra coisa senão forma, a forma não é outra coisa senão vazio. Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são vazio. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso, Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, não existem dharmas. Não existe dhatu do olho, nem dhato da mente, não existe dhatu de dharmas, nem dhatu da consciência da mente. Não existe ignorância nem fim da ignorância, assim como não existe nem velhice nem morte, nem fim da velhice e da morte. Não existe sofrimento, nem origem do sofrimento, nem cessação do sofrimento, não existe caminho, nem sabedoria, nem apego, nem desapego. Por isso, Shariputra, já que os Bodhissátvas a nada se apegam, vêem de acordo com o Prajnaparamitra. Como não há nenhum obscurecimento da mente, não existe medo. Eles transcendem à falsidade e atingem o Nirvana completo. Todos os Buddhas das três eras praticando o Prajnaparamitra despertam plenamente para a Iluminação insuperável, verdadeira e completa. Por isso o grande mantra do Prajnaparamita, o mantra do grande insight, o mantra insuperável, o mantra inigualável, o mantra que acalma todo sofrimento deve ser conhecido como verdadeiro e sem nenhuma ilusão. O mantra do Prajnaparamita é dito desta maneira:

OM GÁTE GÁTE PARAGÁTE PARASANGÁTE BODHI SOHA!

"É assim, ó Shariputra, que o Mahassátva Bodhissátva deve praticar o Prajna Paramitra profundo".




Então o Abençoado saiu daquele Samadhi e elogiou o Nobre Avalokitésvara, o Mahassátva Bodhissátva, dizendo:




"Muito bem, muito bem, ó filho de nobre família. Assim é, ó filho de nobre família, assim é. Deve-se praticar o Prajnaparamitra Profundo exatamente como disse, e todos os Tatágatas se rejubilarão".





Depois que o Abençoado proferiu, o Venerável Shariputra, o Nobre Avalokitésvara, o Mahassátva Bodhissátua, e toda aquela assembléia, junto com o inteiro universo com seus deuses, seres humanos, assuras e gandharvas regozijaram-se e louvaram todos as palavras do Abençoado.

PELA VERDADE DA EXISTÊNDIA DAS TRÊS JÓIAS POSSAM TODOS OS OBSTÁCULOS E ADVERSIDADES SEREM SUPERADOS! QUE DEIXEM DE EXISTIR!(bate-se palma)


QUE SEJAM PACIFICADOS!(bate-se palma)


QUE SEJAM COMPLETAMENTE PACIFICADOS!(bate-se palma)


QUE AS HOSTES DOS OITENTA MIL OBSTÁCULOS SEJAM PACIFICADOS! QUE ESTEJAMOS TODOS AFASTADOS DAS CONDIÇÕES DESFAVORÁVEIS AO DHARMA E QUE POSSAMOS NOS APROXIMAR DE TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE CONDUZAM VERDADEIRAMENTE AO DHARMA! QUE TUDO SEJA AUSPICIOSO, QUE TODOS NÓS SEJAMOS FELIZES, QUE PAIRE AQUI O BEM-ESTAR AGORA!






II - Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria






[Segundo o buddhismo Mahayana,] o Prajnaparamita foi ensinado pela primeira vez pelo Buddha no Pico dos Abutres, próximo a Rajgir, no curso do que veio a ser conhecido como o Segundo Giro da Roda do Dharma. Após dar os ensinamentos relacionados ao sofrimento, às suas causas, à cessação e ao caminho da liberação, o Buddha ensinou o significado último do Dharma, a vacuidade de existência inerente de todos os fenômenos. Este ensinamento encontra sua expressão mais concisa no famoso Sutra do Coração.
Este sutra toma a forma de um diálogo entre Avalokiteshvara e Shariputra aos pés do Buddha. Avalokiteshvara aplica o raciocínio da negação para mostrar a verdade absoluta a Shariputra. A forma deste raciocínio apresenta certas características análogas à tradição escolástica da teologia negativa do cristianismo oriental. É por definição impossível expressar o inefável, o que está além da expressão, e o mesmo é verdadeiro para a verdade absoluta, que está além das palavras e dos conceitos. O máximo que se pode expressar é o que ela não é, pela exclusão: "Assim, Shariputra, na vacuidade não há forma, nem sensação, [...] nem sofrimento, [...] nem cessação [do sofrimento], [...] nem atingimento nem não-atingimento."
O termo vacuidade não carrega aqui qualquer conotação de vazio ou nada absolutos. Deve ser entendido como o estado da mente naturalmente aberto e sereno. Assim, afirmar a vacuidade dos fenômenos não significa, de qualquer modo, que eles não existem da mesma forma não existe o chifre de uma lebre ou flores no céu. Ao invés disso, a vacuidade refere-se ao insight de que, no nível absoluto, tanto os fenômenos internos — as sensações, as percepções e o "eu" — quanto os externos — todas as aparências do mundo fenomênico — não têm existência real, apesar de eles aparecerem em diferentes formas. O Sutra do Coração sumaria isto da seguinte maneira: "A forma é a vacuidade, a vacuidade é a forma, a vacuidade não é outra senão a forma, a forma não é outra senão a vacuidade."
"A forma é a vacuidade" é o insight (sânsc. prajna) que desafia o materialismo e a concepção realista do universo ao estabelecer que os fenômenos — desde a menor partícula até a onisciência dos buddhas — definitivamente não possuem qualquer existência por si próprios. "A vacuidade é a forma" é a afirmação da verdade relativa e a rejeição das concepções niilistas. A vacuidade manifesta-se como forma em todas as coisas, tanto materiais quanto imaginárias, e não pode ser encontrada fora destes fenômenos. Deste modo, os bodhisattvas não podem cortar-se do mundo nem encontrar deleite individual na vacuidade, mas eles devem fazer uso dos meios hábeis (sânsc. upaya), tais como a bondade amorosa e a compaixão, a fim de realizar a verdade absoluta. Com esta meta, eles devem desenvolver as qualidades da generosidade, disciplina, paciência, perseverança e meditação, as cinco perfeições relativas que são os meios para realizar a sexta perfeição, a sabedoria ou insight (sânsc.prajna). "A vacuidade não é outra senão a forma, a forma não é outra senão a vacuidade" expressa a inter-relação destas seis perfeições, como é impossível separar a vacuidade das aparências, a união necessária da verdade relativa e da verdade absoluta aos princípios de exclusão e de contradição mútua. A vacuidade não nega ou refuta a forma, e do mesmo modo a forma não nega ou refuta a vacuidade.
A fim de ilustrar a vacuidade da existência inerente dos fenômenos, os comentadores muitas vezes usam o exemplo do sonho. De fato, as imagens do sonho são vazias de qualquer realidade material por si próprias, já que elas não são compostas por átomos ou partículas. Do mesmo modo, nem o sentido da visão ou a consciência visual, que estão na base da visão destas imagens, têm qualquer existência real. O fogo que se percebe em um sonho não existe realmente; ele simplesmente aparece como o jogo da mente e, nunca tendo existido, também não podem perecer. Por isso, o nível de existência das imagens do sonho nada mais é que uma convenção, um termo aplicado para definir a experiência mental. Não se pode afirmar que os sonhos não existem, pois na consciência do sonhador eles produzem emoções, sofrimento ou alegria, lágrimas ou riso. Nem se pode afirmar que eles realmente existem, pois eles são vazios de qualquer realidade intrínseca por si mesmos, fora da consciência que os criou no primeiro lugar. Do mesmo modo, de acordo com o Mahayana, os fenômenos parecem existir, mas na realidade a sua essência é a vacuidade. Eles são como uma miragem ou uma ilusão criada por um mágico.
A escola de pensamento que articula esta visão é chamada Caminho do Meio (sânsc. Madhyamaka) porque estabelece que os fenômenos não são nem existentes ("a forma é a vacuidade"), nem não-existentes ("a vacuidade é a forma"), nem qualquer outra combinação destes dois extremos. Ela portanto situa-se no meio, entre os pontos de vista eternalista e niilista, insistindo sobre a impossibilidade de separar as duas verdades (relativa e absoluta), de separar samsara e nirvana. Portanto, a natureza de todos os fenômenos não pode ser reduzida a conceitos, por mais profundos que sejam. Está além de toda conceitualização. Esta doutrina Madhyamaka foi sistematizada por Nagarjuna (século II) em seu Tratado Fundamental sobre o Caminho do Meio chamado "Sabedoria", mais tarde comentado por Chandrakirti (século VI) em seu Entrando no Caminho do Meio — Um Comentário ao "Tratado Fundamental sobre o Caminho do Meio".





(Edou, Jérôme. Machig Labdrön and the Foundations of Chöd.Ithaca: Snow Lion, 1996. Pág. 25-27.)



III- DIÁLOGO DE SUA SANTIDADE O DALAI LAMA

com Jean-Claude Carrière.


Jean-Claude Carriere






Publicado no: Mandarim, 1996."A força do budismo" S. Paulo



As escrituras fundamentais de Mahayana constituem uma centena de volumes. Uma parte dessas Escrituras leva o nome de Prajnaparamita. A prajna é essa qualidade que temos dentro de nós, geralmente adormecida, mas que podemos despertar. Essa palavra é geralmente traduzida por 'sabedoria', o que parece incorreto. Trata-se, antes, de uma predisposição à sabedoria e ao despertar, que podemos pôr em prática ou deixar adormecida. A Prajnaparamita é a consumação da prajna, a chegada ao fim do caminho. Uma frase, atribuída ao próprio Buda e chamada de 'a grande libertação, o mantra sem igual', diz o seguinte: "A forma é só vazio, o vazio é só forma Ou então, segundo outras traduções: "Onde há forma, há vazio e onde há vazio há forma".

Pergunto a meu anfitrião [O DALAI LAMA]: - Posso esperar, um dia, compreender esse mantra?


Primeiro, ele ri abertamente. Depois reconhece que o vazio, sunyata, dentre as quatro noções budistas fundamentais (sendo as outras três a impermanência, a ausência de ego e o sofrimento), é com certeza a mais misteriosa, a mais difícil de ser percebida. O que é então esse imenso edifício de experiência do pensamento que na verdade só se abriria sobre uma ausência de substância? Quais seriam os fundamentos desse edifício e do espírito que o construiu? Se o vazio é a única realidade que não é ilusória e se esquiva da rede de Maya, quem estendeu essa rede? Pode-se viver na vertigem? Imaginar um sonho sem sonhador?


O Dalai-Lama responde-me primeiro que o vazio é uma noção científica:


-Você mesmo o disse. Somos vazios, a matéria de que somos compostos é, por assim dizer, vazia. -É verdade, o núcleo de cada átomo, se é que se pode ainda falar de dimensão nessa escala, é ínfimo em relação ao próprio átomo. Um grão de arroz, já o dissemos, sobre o domo da basílica de São Pedro. A mesma coisa para o universo. Se toda matéria nuclear dos bilhões e bilhões de galáxias se dispersassem na extensão do universo, a densidade dessa matéria seria reduzida a quase nada. Algumas partículas por metro cúbico. Imperceptível.


-Você percebe bem as coisas.


-E suponho que a concepção budista do vazio não tivesse para Nagarjuna um ponto de partida científico?


-E por que não? Existem vários caminhos que levam ao conhecimento. E algumas vezes eles se encontram.


-Pode-se falar do vazio sem falar no vazio?


-Penso que sim. Primeiro é preciso especificar que a palavra 'vazio' não quer dizer 'nada'. Alguns comentaristas acusaram sem motivo o budismo de 'niilismo'. O mundo, do qual fazemos parte, não é um ser em si nem um conjunto de seres. Ele é uma fluidez. Uma corrente de estados. Isso não significa que ele não seja nada.


-Dizer 'eu não sou" não significa 'eu sou nada'. -De forma alguma. E isso pode ser explicado dessa forma: tudo depende de tudo. Nada existe em separado. Penso, aliás, que nesse ponto a ciência contemporânea anda no mesmo caminho que nós. Acredito, também, que sim. Ela põe ênfase mais freqüentemente nas relações entre os fenômenos do que nos próprios fenômenos. Dizemos o seguinte: por causa de todas as influências que elas recebem, as coisas aparecem, existem e desaparecem. Incessantemente. Em um fluxo contínuo. Mas elas nunca existem por si mesmas. Esta mão, por exemplo... Ele abre sua mão, a palma para cima, e a coloca sob meus olhos. Ela dá impressão de solidez, de coerência. Ela oferece aos olhos uma forma precisa. Ela tem toda a aparência de uma entidade.

Ele toca agora as diferentes partes de sua mão, a palma, depois os dedos, depois as falanges. Mas se eu me perguntar seriamente, se eu me pergunto: no fundo, o que é minha mão? É esse dedo? É essa parte do dedo? Não, eu só posso responder: meu dedo é meu dedo, ele não é minha mão. Mas, por sua vez, será ele um conjunto de falanges? Não, já que eu posso decompô-lo em falanges e apenas estudar, olhar, nomear cada uma de suas falanges. Aliás, por que parar nas falanges? Evidente! Posso descer cada vez mais profundamente no interior dessa matéria que aí está sem nunca encontrar minha mão realmente. Entretanto, você usa sua mão.

Ela existe para isso. E me satisfaz muito bem. A essa combinação de diversos elementos (em que cada um se decompõe e todos se juntam) chamamos 'uma mão'. É muito simples. Assim a designamos por um trabalho familiar ao espírito. É o que chamamos de realidade relativa.


- Que depende de outros elementos que não ela mesma.


- Exatamente. Pois nada existe sem uma causa. A natureza profunda desta mão é pertencer a toda uma rede de influências, das quais nenhuma é durável.


- Por isso essa mão deixará um dia de ser sua mão.


- Ela o terá sido apenas por um momento muito breve, se comparada à idade do mundo. Um momento fugidio, quase imperceptível. Estamos todos persuadidos de vivermos independentemente uns dos outros, desta mão ou desta folha de papel terem uma existência separada.


- Nosso espírito tem necessidade de separar e de nomear. Ele não consegue se contentar com uma visão complexa e confusa do mundo.


- Visão esta que se deve entretanto admitir e tentar atingir. Sem isso, estamos escolhendo permanecer na ilusão. Se cada ser vivo, se cada objeto gozasse de uma existência independente, nenhum outro fator poderia influenciá-lo. As relações de que você fala não existiriam. Ora, vemos que essas influências, essas relações são múltiplas e incessantes.


- É essa ausência de existência independente, então, que o senhor chama de 'vazio'? - Precisamente. A forma é portanto vazia, isto é, não-separada, não-independente. Essa forma depende de outros múltiplos fatores. Ela é a realidade relativa.


- E por que o vazio é forma? - Porque toda forma se desenvolve nesse vazio, nessa ausência de existência independente. O vazio só existe para conduzir a forma. Não pode ser diferente. O vazio sem a forma não tem sentido. Assim a folha de papel era vazio. Vazio, isto é, cheia. Cheia de todo o cosmo.


Na tradição tântrica do Vajrayana, do 'Veículo de Diamante', vê-se até desaparecer a distinção entre realidade absoluta e realidade relativa, entre o 'não-nascido' e o 'nascido' ou, se preferirmos, a essência e a existência. A verdade definitiva e intransponível pode nos ser dada no mundo dos sentidos pela técnica chamada de 'visão pura'. Ela aproxima o tathata, a evidência. Os fenômenos deixam de aparecer como fenômenos, na verdade o problema da ignorância e da distinção não mais se coloca, tudo nos é dado por essa percepção superior, não há nada para se buscar além disso. A unidade se impõe. Ela é brilhante. Nada separa então o vazio e a luz. Chegamos - e isso é quase inevitável - a essa noção delicada de 'virtualidade', que desde uma dezena de anos se introduz e até mesmo se instala pouco a pouco na expressão científica, ao mesmo tempo em que invade as novas fábricas de imagens. Recusando-se a admitir a criação do mundo a partir de nada, ex nihilo, pois nesse caso o físico não teria estritamente nada a dizer diante da ausência de matéria, certos cientistas contemporâneos dentre os mais hábeis, como Michel Cassé, falam de uma "coragem diante do zero"(1) e simplesmente recusam o nada. Eles distinguem claramente o vazio metafísico, ou nada, pura concepção do espírito, do vazio quântico que eles vêem povoado por uma infinidade de virtualidades. Esse vazio não é um nada. Ele supõe a existência de um campo, mas esse campo nos foge à compreensão, ele não é detectável.


Podemos ver seus efeitos, pois ele liga entre si as partículas reais, e ele nos parece até agitado, mas não podemos observá-lo. É por isso que o chamamos de vazio, quando na verdade ele é pleno. Pleno de virtualidades da matéria. Para alcançar a existência aparente, as conjunções de partículas virtuais aguardam apenas uma energização e o próprio fato de observá-las pode ter um papel determinante. Estamos aqui muito perto da ausência de dualidade - entre o observador e o observado -, tantas vezes repetida na história do hinduísmo e do budismo. "Para sempre inseparável da coisa que se vê está a coisa que é vista", dizia assim, no século XVI, Kun Khyèn Péma Karpo. Michel Cassé, astrofísico, chega até a dizer que "o conhecimento do estado de vazio tornou-se uma condição necessária para a edificação de um modelo coerente de natureza". Ele vê esse vazio como uma coisa plena e com um destino" e o coloca "no cume cósmico e lógico do discurso sobre as origens". Ele até escreve, perto do final de seu livro: "Estar no vazio e estar em casa Nenhum professor budista encontraria alguma observação a respeito. No momento, são bastante raros os físicos que se aventuram nesse campo. A maioria deles prefere se ater à matéria tal qual ela nos é apresentada. E essa matéria parece manter aos olhos deles seu sentido tradicional: algo de sólido, que pesa, em suma, algo pleno. O Big-Bang lhes parece o limite estrito para além do qual nada pode ser dito, nem pensado, nem imaginado. É verdade que é difícil considerar a matéria como vazio, como se tivesse aos poucos, depois de séculos de observação, praticamente se desmaterializado. É aqui, talvez, que a maleabilidade do budismo pode nos ajudar a aceitar o que nós mesmos descobrimos, e que as palavras comuns nos impedem de dizer. Entretanto, o Dalai-Lama me faz observar: - Quando designamos as coisas, podemos dizer que elas dependem de nosso espírito. Assim, tanto o Big-Bang como a matéria talvez dependam de nosso espírito. E até mesmo de uma necessidade de nosso espírito. Assim, portanto, ele faz parte da realidade relativa. Hoje o chamamos Big-Bang. Amanhã lhe daremos sem dúvida outro nome. Não nos deixemos aprisionar por conceitos formulados por palavras. Ambos são efêmeros. Aceitemos o vazio com um sorriso e, já que tudo depende de nosso espírito, confiemos em nosso espírito. Ele me lembra que essa confiança, evidentemente, não deve ser cega. O budismo dispõe a esse respeito de um imenso arsenal de precauções para defender o espírito contra o espírito e para conduzi-lo a seu próprio cume. A caminhada suprema leva ao desaparecimento desse espírito, dos demônios, do próprio Buda. O vazio é o grande objetivo. Quando a última verdade foi alcançada, Milarepa cantou:

Não há meditador,
Não há objeto a ser meditado,
Não há sinais de realização,
Não há etapas nem caminho a percorrer,
Não há sabedoria última,
Não há corpo de Buda.

Também o nirvana não existe. Tudo isso são apenas palavras, modos de dizer. É inútil pretender começar por esse desaparecimento idealisticamente desejado, esse acesso à plenitude do vazio. Primeiro, o proclamaríamos, ele só nos levaria ao desencorajamento solitário, fruto do niilismo, ou à violência desordenada do egoísmo: já que nada existe, já que eu não sou controlado por nenhuma autoridade superior, por que não me abandonar a meus instintos mais monopolizadores?

De uma coisa não se pode duvidar, diz o Dalai-Lama para terminar: temos todos dentro de nós mesmos uma qualidade que apenas pede para ser revelada. Ela se chama prajna. Podemos tudo negar, salvo essa possibilidade que temos de sermos melhores.

- Reflitamos simplesmente sobre isso.
Ele toma minhas mãos e as segura demoradamente entre as suas.
Ele me olha sorrindo.
Como toda conversa, esta nos conduz ao silêncio.

Publicado no: Mandarim, 1996."A força do budismo" S. Paulo









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