sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O Caminho do Xamã



Por: MICHAEL HARNER

(*) Extraído de http://holosgaia.blogspot.com

Quando o breve crepúsculo equatoriano foi substituído pela escuridão, Tomás pôs um quarto do líquido numa cabaça e disse-me que o bebesse. Todos os índios observavam. Senti-me como Sócrates entre os compatriotas atenienses, aceitando a cicuta — pois me ocorrera que um dos nomes alternativos que o povo do Amazonas peruano dava à ayahuasca era "a pequena morte". Bebi a poção rapidamente. Tinha um sabor estranho, ligeiramente amargo. Então, esperei que Tomás também bebesse, mas ele disse que afinal resolvera não participar.


Amarraram-me na plataforma de bambu, sob o grande teto feito de colmo da casa comunal. A aldeia estava silenciosa, exceto pelo cricrilar dos grilos e os guinchos do macaco ruivo, nas profundezas da selva.


Enquanto olhava para cima, na escuridão, tênues linhas de luz apareceram. Tornaram-se mais nítidas, mais intrincadas e explodiram em cores brilhantes. De muito longe vieram sons, como os de uma cascata, e foram se fazendo cada vez mais fortes, até encherem meus ouvidos.


Minutos antes eu me sentira desapontado, certo de que a ayahuasca não ia ter efeito sobre mim. Agora, o som da água em movimento inundava meu cérebro. Meu maxilar começou a ficar entorpecido, e aquele entorpecimento ia subindo para as têmporas.


Sobre a minha cabeça, as linhas indistintas formavam um dossel que parecia um mosaico geométrico de vidro pintado. A brilhante tonalidade violeta formava um teto que se expandia sem cessar sobre mim. Dentro daquela caverna celestial, ouvi o som da água aumentar e pude ver figuras nebulosas, que faziam movimentos espectrais. Quando meus olhos se ajustaram ao escuro, a cena movimentada reduziu-se a algo que se assemelhava a um imenso parque de diversões, a uma orgia sobrenatural de demônios. Ao centro, presidindo as atividades, e olhando diretamente para mim, havia uma gigantesca cabeça de crocodilo mostrando os dentes, de cujas mandíbulas cavernosas jorrava uma enxurrada torrencial de água. Lentamente, a água foi subindo, até que a cena transformou-se em simples dualidade de céu azul sobre o mar. Todas as criaturas se haviam desvanecido.


Então, da posição onde eu estava, próximo à superfície da água, comecei a ver dois barcos estranhos, vagando de cá para lá, flutuando no ar em minha direção e aproximando-se cada vez mais. Lentamente, juntaram-se, formando uma só embarcação, com imensa cabeça de dragão na proa, não muito diferente de um barco viking. No meio do navio erguia-se uma vela quadrada. Aos poucos, enquanto o barco serenamente flutuava de cá para lá sobre mim, ouvi um som rítmico sibilante e vi que se tratava de uma galera gigantesca, com centenas de remos, movendo-se em cadência com o som.


Tornei-me consciente, então, do mais belo cântico que tinha ouvido em minha vida, em alto som, e etéreo, emanado de miríades de vozes a bordo da galera. Olhando com mais atenção para o convés, pude distinguir grande número de seres com cabeça de gaio azul e corpo de homem, bastante parecidos com os deuses do antigo Egito, com cabeça de pássaro, que eram pintados nas sepulturas. Ao mesmo tempo, uma essência de energia, advinda do navio, começou a flutuar em meu peito. Embora eu pensasse que era ateu, fiquei inteiramente certo de que estava morrendo, e de que aquelas cabeças de pássaro tinham vindo buscar a minha alma para levá-la ao barco. Enquanto o fluxo da alma continuava a sair do meu peito, percebi que as extremidades do meu corpo iam fazendo-se entorpecidas.


Começando pelos braços e pelas pernas, vagarosamente, tive a impressão de meu corpo estar se tornando de concreto. Eu não podia me mover, nem falar. Aos poucos, esse entorpecimento fechou-se sobre o meu peito, na direção do coração, e tentei usar a boca para pedir ajuda, para pedir um antídoto aos índios. Por mais que tentasse, entretanto, não conseguia dominar a minha força o bastante para pronunciar uma palavra. Simultaneamente, meu abdômen parecia se tornar de pedra, e tive de fazer um tremendo esforço para manter meu coração batendo.


Comecei a chamar meu coração de amigo, meu mais querido amigo, a falar com ele, a encorajá-lo a bater, com toda a força que ainda me restava.


Fiz-me consciente do meu cérebro. Senti — fisicamente — que ele tinha sido dividido em quatro níveis distintos. Na superfície superior estava o observador, o comandante, consciente da condição do meu corpo e responsável pela tentativa de manter o coração funcionando. Percebi, mas apenas como espectador, a visão que emanava do que pareciam ser as partes mais profundas do cérebro. Imediatamente abaixo do nível mais alto, senti uma camada entorpecida, que parecia ter sido posta fora de ação pela droga, e ali não estava. O nível seguinte era a fonte de minhas visões, inclusive a do barco da alma.


Agora, eu me sentia virtualmente certo de que estava para morrer. Enquanto tentava avaliar meu destino, uma parte ainda Interior do meu cérebro começou a transmitir mais visões e in-formações — "disseram-me" que esse novo material me estava sendo apresentado porque eu ia morrer e, portanto, estava "pronto" para receber aquelas revelações. Informaram-me que se tratava de segredos reservados aos agonizantes e aos mortos. Apenas vagamente, pude perceber os que me transmitiam esses pensamentos: répteis gigantes, repousando apaticamente na mais ínfima região da parte de trás do meu cérebro, no ponto onde ele encontra a parte superior da coluna espinhal. Eu só podia vê-los de forma nebulosa e, assim, pareciam-me profundezas sombrias, tenebrosas.


Depois, eles projetaram uma cena diante de mim. Primeiro, mostraram-me o planeta Terra tal como era há uma eternidade atrás, antes que nele houvesse vida. Vi o oceano, a terra nua e o brilhante céu azul. Então, flocos pretos caíram do céu, às centenas, e pousaram diante de mim, na paisagem nua. Pude ver que esses "flocos" eram, na verdade, grandes e brilhantes criaturas negras, com reforçadas asas que assemelhavam-se ás dos pterodátilos e imensos corpos como o da baleia. Suas cabeças não eram visíveis a mim. Tombaram pesadamente, mais do que exaustas pela viagem feita, que durara épocas infinitas, Explicaram-me, numa espécie de linguagem mental, que estavam fugindo de alguma coisa, no espaço. Tinham vindo ao planeta Terra a fim de escapar desse inimigo.


Essas criaturas mostraram-me, então, como haviam criado a vida sobre o planeta, com o intuito de se ocultarem sob diversas formas e assim disfarçar sua presença. Diante de mim, a magnificente criação e a especificação das plantas e dos animais — centenas de anos de atividade — foram feitas em tal escala, e com tamanha intensidade, que me é impossível descrever. Aprendi que essas criaturas semelhantes a dragões estavam, assim, dentro de todas as formas de vida, inclusive no homem.* Eram elas os verdadeiros senhores da humanidade e de todo o planeta, foi o que me disseram. Nós, humanos, não passávamos de seus receptáculos e servos. Por isso é que podiam falar comigo de dentro de mim.


Surgindo a partir das profundezas da minha mente, essas revelações alternavam-se com as visões da galera flutuante que quase terminara por levar minha alma para bordo. O barco, com sua tripulação de cabeças de gaio azul no convés, ia aos poucos se afastando, puxando minha força de vida com ele, enquanto seguia em direção a um grande fiorde, flanqueado por algumas colinas erodidas e áridas. Eu sabia que tinha apenas um momento para viver e, estranhamente, não sentia medo daquele povo de cabeças de pássaro, não me importava ceder-lhe a minha alma, se a pudesse manter. Receava, entretanto, que de alguma forma a minha alma não pudesse se manter no plano horizontal do fiorde, mas, por meio de processos desconhecidos, embora sentidos e temidos, fosse capturada, ou recapturada pelos alienígenas das profundezas, com seu aspecto de dragões.


Subitamente senti, de maneira clara, a minha condição de homem, o contraste entre a minha espécie e os antigos répteis ancestrais. Desatei a lutar contra a volta dos antigos, que começavam a parecer cada vez mais alienígenas, e que seriam, possivelmente, perversos. Voltei-me para o auxílio humano.


Com um último esforço, que não pode sequer ser imaginado, mal pude balbuciar uma palavra para os índios: "Remédio!"; vi que corriam para preparar o antídoto e senti que não conseguiriam prepará-lo a tempo. Eu precisava de um guardião que pudesse derrotar os dragões e, desesperadamente, procurei evocar um ser poderoso para proteger-me contra aqueles répteis alienígenas. Um deles apareceu diante de mim e, nesse momento, os índios abriram à força minha boca e nela derramaram o antídoto. Aos poucos, os dragões desapareceram, recuando para as profundezas. O barco das almas e o fiorde já não existiam. Eu, aliviado, relaxei.


O antídoto melhorou radicalmente o meu estado, mas não evitou que viessem novas visões, de natureza mais superficial. Com estas podíamos lidar, eram agradáveis. Fiz viagens fabulosas, á vontade, através de regiões distantes, mesmo para fora da Galáxia, criei arquiteturas incríveis, usei demônios de sorrisos sardônicos para realizar as minhas fantasias. Muitas vezes, dei comigo rindo alto, pelas incongruências das minhas aventuras.


Finalmente, adormeci.


Raios de sol infiltravam-se pelas gretas do telhado de colmo quando acordei. Estava ainda deitado sobre a plataforma de bambu e ouvia os ruídos normais da manhã em tomo de mim: os índios conversando, os bebês chorando e um galo cantando. Descobri, com surpresa, que me sentia repousado e tranqüilo, Enquanto ali ficava, olhando para o padrão lindamente tecido do forro de colmo, as lembranças da noite anterior passavam pela minha mente. Detive-me momentaneamente entre essas lembranças para apanhar meu gravador que estava na bolsa de pertences do meu trabalho. Enquanto remexia na bolsa, vários dos índios vieram cumprimentar-me, sorrindo. Uma mulher idosa, esposa de Tomás, deu-me uma tigela com peixe e molho de lanchagem, que tinham delicioso sabor. Então, retomei à plataforma, ansioso por colocar minhas experiências noturnas no gravador antes que me esquecesse de alguma coisa.


O trabalho de recordar foi fácil, exceto por um trecho do transe de que não podia me lembrar. Ficou em branco, como se a fita não tivesse sido usada. Lutei durante horas para lembrar o que acontecera durante aquela parte da experiência e, virtualmente, trouxe-a à força de volta à minha consciência. O material recalcitrante era a comunicação feita pelas criaturas em forma de dragões, incluindo a revelação do papel que tinham tido na evolução da vida deste planeta e o domínio inato que exerciam sobre a matéria viva, inclusive sobre o homem. Fiquei bastante animado ao descobrir de novo esse material, e não pude deixar de sentir a sensação de que eles não haviam imaginado que eu pudesse trazê-lo de volta das regiões mais recônditas da mente.


Tive até mesmo uma sensação muito peculiar de medo em relação à minha segurança, porque agora possuía um segredo que, segundo as criaturas, estava reservado aos mortos, aos agonizantes. Imediatamente, resolvi repartir essa parte do meu conhecimento com os outros, para que o "segredo" não ficasse somente comigo e minha vida não fosse ameaçada. Coloquei meu motor de popa numa canoa feita de um só tronco e parti para uma missão evangélica americana que ficava nas proximidades.


O casal da missão, Bob e Millie, era objeto de maior estima que os missionários comuns enviados pelos Estados Unidos: eram hospitaleiros, dotados de senso de humor e compassivos.[1] Contei-lhes minha história. Quando descrevi o réptil de cuja boca esguichava água, marido e mulher se entreolharam, foram buscar a Bíblia, e leram para mim o seguinte trecho do Capítulo 12 no Livro do Apocalipse:


"E a serpente lançou pela boca um rio de água..."


Explicaram-me que a palavra "serpente", na Bíblia, era sinônimo das palavras "dragão" e "Satã". Continuei a minha narrativa. Quando cheguei ao trecho sobre as criaturas com aspecto de dragão a fugir de um inimigo que estava além da Terra e caindo aqui para escapar aos seus perseguidores, Bob e Millie ficaram impressionados e, de novo, leram para mim algo mais, da mesma passagem do Livro do Apocalipse:


"E houve uma batalha no céu: Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão. O dragão e seus anjos combateram, mas não conseguiram vencer, nem se encontrou mais seu lugar no céu. E o grande dragão, a antiga serpente, chamado Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro, foi expulso; foi atirado à Terra, e seus anjos com ele."


Ouvi com surpresa e assombro. Os missionários, por sua vez, pareciam tomados de respeitoso temor diante do fato de um antropólogo ateu aparentemente poder, por haver bebido um líquido de "feiticeiros", receber algo do mesmo material sagrado do Livro do Apocalipse. Quando terminei minha narrativa, senti-me aliviado por ter repartido meu novo conhecimento, mas também estava exausto. Caí adormecido no leito dos missionários, deixando-os a prosseguir com a conversa sobre aquela experiência.


Ao entardecer, quando voltei à aldeia em minha canoa, minha cabeça começou a latejar no ritmo do ruído do motor de popa; pensei que estava enlouquecendo; tive de tapar os ouvidos com a mão para evitar essa sensação. Dormi bem, mas no dia seguinte notei um entorpecimento ou pressão na cabeça.


Agora, tinha muita vontade de pedir a opinião profissional do índio que mais entendia de assuntos sobrenaturais, um cego que fizera muitas viagens ao mundo dos espíritos com a ajuda da ayahuasca. Parecia-me bastante apropriado que um cego pudesse ser o meu guia no mundo das trevas.


Fui à cabana dele, levando meu caderno de anotações, e descrevi as visões que tivera, segmento por segmento. Primeiro, falei-lhe apenas das luzes brilhantes; então, quando cheguei às criaturas com aspecto de dragões, omiti o trecho em que chegaram do espaço e disse apenas: — Havia animais negros, gigantescos, algo assim como enormes morcegos, maiores que esta casa, e eles disseram que eram os verdadeiros senhores do mundo.


— Não havia a palavra dragão para os Conibo, assim "morcegos gigantescos" era o que de mais parecido havia para descrever o que eu tinha visto.


O índio fixou em mim seus olhos sem luz e disse, careteando um sorriso: — Ah! Eles estão sempre dizendo isso. Mas são apenas senhores das Trevas Exteriores.


Fez um movimento despreocupado com a mão, rumo ao céu. Senti um arrepio percorrer a parte inferior da minha espinha, porque eu ainda não lhe tinha dito que em meu transe eu os tinha visto chegar do espaço.


Fiquei estupefato. O que eu havia experimentado já era familiar para aquele xamã cego e descalço, conhecido por ele em suas próprias explorações do mesmo mundo oculto no qual eu me aventurara. A partir desse momento, decidi aprender tudo quanto pudesse sobre xamanismo.


E houve algo mais que me encorajou em minha nova indagação. Depois que contei toda a minha experiência, ele me disse que não conhecia ninguém que tivesse encontrado e aprendido tanto em sua primeira viagem com a ayahuasca.


— Sem dúvida, o senhor vai ser um mestre xamã — disse ele.





* Em retrospecto, seria possível dizer que era quase como o DNA, apesar de que, naquele tempo, 1961, eu nada sabia sobre o DNA (ácido desoxirribonucléico).




[1] Seus nomes foram mudados.


Do livro O Caminho do Xamã, de Michael Harner

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